As Aventuras e as Desventuras do Fabuloso Barry Lyndon, por Kubrick
Barry Lyndon (Barry Lyndon; 1975), uma adaptacao muito particular que Kubrick faz a partir do romance do ingles William M. Thackeray
Certa vez o cineasta americano Stanley Kubrick afirmou que de um grande livro não sai um grande filme, ao contrário, um grande filme só pode nascer de um mau livro, aquele desdenhado pelos esnobes da literatura. Tomadas em sua aparência, as palavras de Kubrick logo fizeram os críticos arregalarem os olhos: como podia afirmar isto um diretor de cinema que rodara alguns marcos de sua filmografia a partir de obras-primas de Vladimir Nabokov, Anthony Burgess e William M. Thackeray? Kubrick sempre este à frente de nossa percepção muitas vezes literária, literal e trivial do cinema.
Barry Lyndon (Barry Lyndon; 1975) é uma adaptação muito particular que Kubrick faz a partir do romance do inglês William M. Thackeray. O livro foi publicado originalmente em 1844 com o título The luck of Barry Lyndon. Reeditado em 1856, o autor lhe alterou o batismo: The memoirs of Barry Lyndon. Apesar de pertencer ao século XIX, a obra-prima de Tackeray segue os passos do romance difuso, divagante, solto do século anterior: uma ficção pré-balzaquiana; algo que se contrapõe à ordem narrativa que pela mesma época na Inglaterra Charles Dickens punha em cena.
Sem embargo do esqueleto da história central permanecer, o Barry Lyndon de Kubrick faz uma narrativa que se afasta bastante do jeito de escrever e pensar a estética de Thackeray. Kubrick dá uma organização cerebral à ordem das coisas e despoja seu filme das gorduras de reviravoltas da história original. Talvez devêssemos pensar na concepção de Kubrick de que um grande livro não serve a um filme: é um pouco como se desmontasse a riqueza literária de Thackeray e a erigisse depois nas imagens que aí sim podem gerar um grande filme. O Barry Lyndon de Kubrick desfaz em parte o romance de Thackeray. Utiliza a mesma época, permitindo-se o deslumbramento de luzes, cores, cenários e figuras duma pintura histórica; mantém, ou recria, certos comportamentos do tempo. Mas faz algo, ao longo de suas três horas de projeção, uma concentração de ideias: as origens, as ambições, a ascensão e a dolorosa queda de Barry Lyndon, desde sua paixão por sua prima, um casamento com uma viúva aristocrata que o torna nobre, os dilemas com seu áspero e cínico enteado, o envolvimento na Guerra dos Sete Anos, duelos, seu acidentado final longe dos faustos da corte em que vivera, um retrato suntuoso e no entanto distanciado que não foi bem compreendido em sua época.
Feito logo depois dos futuristas 2001, uma odisseia no espaço (1968) e Laranja mecânica (1971), que tinham elementos temáticos para um sucesso de estima naqueles anos, Barry Lyndon pareceu a muitos mais inócuo em seu formalismo transbordante. Esta percepção, que se foi desfazendo ao passar das décadas, revela aquilo que um homem com o senso de cinema de Kubrick já acusava bem antes: o cinema como a arte nova do século XX ainda não fora desfrutado em sua plástica original; as percepções ainda eram literárias, pictóricas ou musicais. Faltava aos analistas a capacidade cinematográfica.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br