O Amargor nos Abismos
Malu sobrevive com uma natureza profunda a um olhar para as tempestades dum tipo de ser talvez so possivel nas caracteristicas do Brasil dos anos 70 ou 80
O cineasta Pedro Freire retrata sua mãe, a atriz Malu Rocha, em Malu (2024). Sua visão duma personagem pública que foi sua mãe está invadida de complexos e demônios filiais que não deixam de expor a admiração e a perplexidade duma geração por outra. Malu, a intérprete que conviveu com Plínio Marcos e Tônia Carrero e que por suas irreverências ou maus modos teve agudos problemas com os olhares desconfiados dos aparatos da ditadura militar, é reconstituída em detalhes de época ao mesmo tempo em que faz desabrochar a complexidade de sua alma.
Jogando a personagem entre dois conflitos que seu interior nunca logra conciliar, um conflito com a velha mãe conservadora, outro conflito com a filha adolescente em busca dum caminho que já não é aquele contestatório e marginal ou clandestino dos jovens dos anos 60 e 70, Freire faz um filme que em muitos momentos tem o dom de inquietar a passividade do espectador de cinema. Embora assinalado pela vertigem psicanalítica em que o próprio diretor mergulha ao transformar em imagens dramáticas sua própria mãe, às vezes turbulenta e incompreensível, a duras penas convertida numa personagem à parte daquelas das lembranças do diretor, o filme Malu sobrevive com uma natureza profunda a um olhar para as tempestades dum tipo de ser talvez só possível nas características do Brasil dos anos 70 ou 80, talvez mais compreensível por quem estava lá naqueles anos.
Malu Rocha, a criatura do filme, tentemos esquecer sua origem real, é, como são os seres humanos, o paradoxo em ação. Revela às vezes um ódio pela maneira de ser da mãe; em certo instante a despeja de casa porque não a aguenta mais. As relações com a filha também não são nada boas: as facilidades provocativas de Malu muitas vezes irritam sua filha porque este ato de provocar foi perdendo o poder de choque para as gerações atuais. Diz Freire que na personagem da filha ele incluiu dados dele próprio, Freire, e de sua irmã para estabelecer o dado geracional. Em uma cena a matriarca, mãe de Malu, expõe em desabafo um abuso paterno com sua irmã mais nova e uma estranha inveja por isso, por não ter interessado ao pai abusador como mulher; Malu fita chocada com a mãe: a realidade evocada por quem viveu essa realidade perturba mais que as palavras ou vitupérios da geração dos 60 hoje endereçados a lugar nenhum. Melancólico, cheio de transtornos transbordantes, amiúde doloroso. Impressiona como Freire, um diretor homem, parece ter sabido expor tão bem três gerações de mulheres. Alto grau de observação: coisas de quem tem a sensibilidade de sua arte como lente do que vê.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br