A Aula de Joao Moreira Salles: Eduardo Coutinho
Moreira Salles dispoe diante do ouvinte atento e interessado em cinema os instrumentos de visao que um cinema como o de Coutinho da a ver
Um dos principais momentos da programação do Festival do Rio de 2024 foi a aula que o cineasta e ensaísta João Moreira Salles deu, numa das salas do Estação Net Botafogo, em torno de cinema de Eduardo Coutinho. Arguto observador das armas e evasivas do cinema documental, estudioso e até mesmo companheiro das buscas cinematográficas de Coutinho, Moreira Salles dispõe diante do ouvinte atento e interessado em cinema os instrumentos de visão que um cinema como o de Coutinho dá a ver.
Definindo a arte de Coutinho como um cinema da palavra (que inclui também o silêncio que é a supressão da palavra), da ética como mais importante que uma orientação estética, da incompletude (o filme é abandonado, nunca concluído), João situa o ponto de virada de Eduardo a partir de Santo Forte (1999). (Cabe aqui um interregno: este cinema da palavra seria na verdade um cinema da conversa, e um cinema da conversa popular, não aquela conversa à maneira francesa de Éric Rohmer; a ética move para uma estética, se interligam, assim como as impossibilidades físicas que a idade determinam a Coutinho, observa João Moreira Salles, levam a um determinado processo, as personagens vão ao estúdio onde o cineasta, numa cadeira, espera por eles). Santo Forte, identifica João, é este marco nos procedimentos formais de Eduardo. Depois da descarga histórica que representou Carga marcado para morrer (1984), onde uma edição de imagens entre o antigo Cabra (1964) e o atual se endereçam para uma meditação sobre o processo cinematográfico de Coutinho e do próprio cinema brasileiro, o cineasta passava cada vez mais a construir em suas narrativas documentais a cena do instante, os fundamentos se concentram no ato de filmagem que não admite interrupção nem um novo momento, a memória se converte em presente e de certa maneira, anota Moreira Salles, deixa de ser memória para ser uma vivência do presente. Com senso notável de quem conhece o cinema e o indivíduo Coutinho em profundidade (embora Coutinho pretenda revelar-se nas superfícies, nunca nas enganosas profundidades), por ter convivido com Coutinho e observado seus filmes também a partir da pessoa do realizador, Moreira Salles identifica esta radicalização do debruçar-se sobre o ato de filmagem (sem edição, sem cenas posteriores adicionais) na influência do filme francês Shoah (1985), de Claude Lanzmann, que abdica de filmar diretamente os campos de concentração e vai na cata dos depoimentos (a palavra) daqueles que de alguma maneira viveram na Europa na época do Holocausto. Segundo João, Eduardo viu este filme ao circular por festivais europeus em 1985, quando por lá fora divulgar seu Cabra marcado para morrer. Confidente de Coutinho, Moreira Salles faz a ponte entre a vida e o cinema de seu objeto de análise, Sabendo, pois, das fortes impressões que um filme como Shoah, por suas inovações ao propor uma narrativa que se recusa a usar imagens de arquivo como apoio do que está sendo conversado, João aponta esta referência internacional no cinema muito brasileiro de Coutinho. Claro: não se deixa de ver também uma diferença aguda, Lanzmann está num grande tema, Coutinho evita a grandiloquência dos grandes temas, são os pequenos cotidianos que o enfeitiçam. Em sua exposição, João utiliza um trecho de onze minutos deste afresco das pequenas vidas em torno do grande tema que é Shoah: é a cena do barbeiro que, enquanto corta o cabelo dum cliente, é estimulado por este cliente a falar de sua experiência em barbearia nas bordas do Holocausto, o que este barbeiro viu, o que o horrorizou e suas dificuldades em recontar estas histórias. Ágil esgrimista do ato de ver filmes, João Moreira Salles vê nesta sequência dois procedimentos dos documentários de Coutinho nos anos seguintes da filmografia do brasileiro: o documentário pode usar de simulação, como na ficção, o barbeiro (que de fato foi barbeiro durante o Holocausto) faz de conta que corta o cabelo de alguém, o cliente é somente alguém usado pelo cineasta para estimular a palavra evocativa do ex-barbeiro; Coutinho não se pejará mais de valer-se destes artifícios para chegar ao coração da realidade documental (curiosamente, um dos mais característicos filmes de Coutinho em usar estes procedimentos, Jogo de cena, 2007, foi passado por alto pelo discurso crítico de Moreira Salles). Outro procedimento identificado por João, na cena do barbeiro de Lanzmann, como fonte da forma cinematográfica de Coutinho, é a insistência da exposição da palavra na duração reiterativa das imagens, palavras sobre palavras e tempo de duração é, conforme João, o que caracteriza a natural impressão de realidade do cinema de Coutinho, e o barbeiro do Holocausto é uma boa origem.
Produzida pela Matizar Filmes e trazida pelo Festival do Rio, com uma afluência grande de público interessado, muitos jovens, a aula chamada “Como fazer cinema com quase nada, a gramática mínima de Eduardo Coutinho” traz, pela precisão de João, ideias e paradoxos do fazer cinematográfico de Coutinho, avesso aparentemente à profundidade, detido nas superfícies dos gestos e frases, impressionado com um filme de grande tema histórico como Shoah, cujos processos de linguagem servem a Coutinho para edificar filmes em torno dos pequenos temas, efêmeros, passageiros, quase individuais.
(Eron Duarte Fagunndes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br