O Genio de Filmar Saura

No conjunto da obra de Saura, A Prima Angelica foi o inicio duma inconsciente trilogia de memoria dos abismos humanos e sociais da Espanha

20/02/2023 04:26 Por Eron Duarte Fagundes
O Genio de Filmar Saura

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Antes do escrito: Carlos Saura faleceu em Madri, aos 91 anos, no dia dez de fevereiro de 2023. Esta revisita a um de seus grandes filmes é uma homenagem àquele  que talvez tenha sido a partir dos anos 70 o maior dos cineastas.

A última imagem de A prima Angélica (1973), obra-prima do espanhol Carlos Saura, é um misterioso e transcendente plano de uma mãe que penteia os cabelos de sua filha pequena diante do espelho. Este encerramento de narrativa, assim como todo o desenvolvimento do filme e as extraordinárias medidas cinematográficas de seus quadros, é a materialização duma expressividade visual que um dia Saura teve e justificava o entusiasmo de quem o tínhamos por um dos maiores cineastas de seu tempo; de fato: pelo que realizou entre Ana e os lobos (1972) e Doces momentos do passado (1982), Saura não deve um milímetro a gênios como os italianos Federico Fellini e Michelangelo Antonioni, o sueco Ingmar Bergman ou o francês Robert Bresson. Um dos Sauras do terceiro milênio vistos por aqui, O sétimo dia (2004), é uma atualização dos aspectos formais e temáticos de seu cinema nos anos 70, mas carece de profundidade, categoria cinematográfica que Saura deixou desmanchar-se ao longo dos anos.

No conjunto da obra de Saura, A prima Angélica foi o início duma inconsciente trilogia de memória dos abismos humanos e sociais da Espanha. Saura começava a misturar com rara originalidade os tempos narrativos, criando uma espécie de mente mnemônica em imagens de cinema; uma memória afetiva que desliza com tanta suavidade (poesia) quanta agudeza (filosofia) na tela. Para ativar as lembranças que o incomodam, o realizador espanhol usa de um recurso mais ou menos habitual no cinema e na literatura: o protagonista viaja ao povoado de sua infância para tratar do traslado dos restos mortais de sua mãe, falecida há pouco. Alguns dos exemplares mais bem sucedidos deste procedimento estão em Três irmãos (1980), do italiano Francesco Rosi, e Cinema Paradiso (1988), do também italiano Giuseppe Tornatore: alguém vai à terra natal para um enterro e a roda do tempo mói sua cabeça. Saura vale-se com personalidade própria deste recurso em A prima Angélica: ele perturba os espaços narrativos fazendo com que num mesmo espaço uma cena do presente contracene com uma cena do passado; a sequência pode começar no presente e passar sem corte e imperceptivelmente para o passado, ou ao contrário; Saura despoja-se do possível artificialismo deste processo, fazendo com que a execução da sequência cheire a absoluta naturalidade. Um dado que torna transparentes e vivos estes jogos de tempo (aqui o cinema é mais do que nunca tempo, o próprio espaço se converte em tempo) é a utilização do mesmo ator, José Luis Lopes Velásquez, para viver o Luis madurão e o Luis menino; o que seria uma aparência grotesca (uma alma de menino no corpo de um homem) nas mãos de Saura é pura magia. Toda esta gama estilística que em A prima Angélica tem uma depuração apaixonante, seria depois levada a formas de insuspeitada criatividade em Cria cuervos (1976) e Elisa, vida minha (1977), os dois filmes seguintes que formariam algo como uma trilogia da memória espanhola a que me referi atrás.

No centro de A prima Angélica, com evocar os tempos duros da Espanha franquista de 1938 às vésperas da II Guerra Mundial, surge em cena o tema do amor perdido do passado. O amor nunca declarado de Luis por Angélica, sua prima que agora madurona está casada e infeliz; é este amor escondido nos movimentos do passado que ressurge subterraneamente no presente, trata-se   na verdade de uma metáfora das esperanças do país segundo a visão de Saura em 1973, quando o franquismo estava em seus apodrecidos estertores (o ditador Francisco Franco morreria pouco depois).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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