Garrel: A Homofonia da Imagem
Já não ouço a guitarra é uma nova divagação sentimental-cinematográfica do cineasta Philippe Garrel
No começo de Já não ouço a guitarra (J’entends plus la guitare; 1991), do francês Philippe Garrel, um homem e uma mulher se enovelam na intimidade e brincam com a homofonia de duas palavras francesas. Ela diz: “Un homme, la mer/mère”. Ele retruca: “Un homme, la mère/mer”. Em francês os vocábulos “mer” (mar) e “mère” (mãe) tem o mesmo som: mér. Como se trata de fala, e não de escrita, não sabemos quais das duas palavras as personagens estão dizendo, podemos pensar numa e noutra ou numa fusão das duas ou num simbolismo que remeta um termo a outro. É um jogo com a homofonia. De certa maneira, todo o cinema de Garrel parece exercer uma estilização de certas imagens homófonas: uma mãe com uma criança no colo é um gesto do cotidiano mas é também —um desenho para a interioridade humana —homofonia visual, imagem igual para coisas diferentes.
Neste aspecto, Já não ouço a guitarra é sua narrativa mais bem-sucedida, aquele gesto cinematográfico onde a estaticidade plástica exulta e delira dentro de suas formas em princípio ásperas, secas, distanciadas. Dedicado à cantora e modelo alemã Nico, com quem Garrel se relacionou nos anos 70, Já não ouço a guitarra é uma nova divagação sentimental-cinematográfica do cineasta, feita de pedaços de lembranças que se encaixam mais nos sentimentos que na lógica dos fatos; um destes pedaços, uma das mulheres do protagonista que morre atropelada quando andava de bicicleta, reconstitui a situação em que morreu a própria Nico.
Em Amantes constantes (2004), um de seus mais belos filmes, uma personagem de Garrel citava o poeta oitocentista francês Alfred de Musset. Cuido mesmo que o realizador rodava seus filmes um pouco como se Musset tomasse da câmara, saindo do túmulo, um pouco como se pudesse transformar em imagens os desmaios em palavras dos textos poéticos de Musset. Em Um verão escaldante (2011), um de seus trabalhos menos exultantes, a italiana Monica Belucci é a modernidade dentro dos pensamentos arcaizantes de Louis Garrel, o filho que nos filmes do pai parece ser um homem do século XIX vivendo no século XX. Já não ouço a guitarra enfeixa estas perturbações do cinema de Garrel com um equilíbrio brilhante, criativo, resgatando as invenções modernas dentro dum olhar antigo ou até fora do tempo —tudo isto porque, aqui como nunca, a homofonia da imagem torna complexas as relações com a mente do observador de cinema.
(Email: eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br