Orgia e Crime à Beira do Lago

Um Estranho no Lago (L’inconnu du lac; 2012), de Alain Guiraudie, é um choque narrativo e moral

01/09/2014 15:24 Por Eron Fagundes
Orgia e Crime à Beira do Lago

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Como escreveu um articulista francês, Alain Guiraudie põe fogo no lago. Acrescente-se: e no rabo de suas personagens. Um estranho no lago (L’inconnu du lac; 2012) é um choque narrativo e moral. Não é a primeira realização do cineasta. Um de seus filmes anteriores, feito em 2000, tem um título provocativo, insinuante, que inunda nosso cérebro de ideias. Em francês: “Ce vieux rêve qui bouge”. Algo assim: “Este velho sonho que se transforma”. O cinema como um sonho em mutação. É assim também com as imagens de Um estranho no lago: as coisas se vão transformando meio secretamente.

O fogo cinematográfico de Guiraudie não poupa nada. Na França o despudor do realizador e de seus intérpretes causou tanto desconforto e discussões quanto as sequências lésbicas em primeiro plano em Azul é a cor mais quente (2013), de Abdelatif Kechiche. Infelizmente estas percepções que o cinema traz como nenhuma outra arte contemporânea (ver as coisas, mesmo que individualmente, pelo prisma das sensações coletivas diversificadas) não chegaram aqui no caso de Um estranho no lago, pois, ainda por enquanto, as ousadias formais e temáticas que propõe assustam um pouco os exibidores comerciais.

O lado desconcertante e belo do filme de Guiraudie é que se trata duma grande foda à beira de um lago, filmada com grande personalidade plástica, um pouco como se Robert Bresson decidisse pôr diante de suas câmaras uma porção de sacanagem. Claro: esquecendo-se o despojamento, concentrando-se no rigor plástico. A trama se permuta no espaço e no tempo (algo que o vocábulo francês, “bouger”, poderia definir melhor, “ce vieux rêve qui bouge”). O que vemos no princípio? A tranquilidade paradisíaca de um local de águas e matas. Esta tranquilidade é acelerada pelas conjunções corporais de homens/atores que não se poupam no prazer buscado. Há um pouco de Pasolini por aí (como em alguns filmes do brasileiro Sérgio Bianchi). Maldição! Uma crônica de aventuras sexuais homoeróticas? Até o momento em que o andamento cronístico da narrativa propõe um mergulho na atmosfera policial ditada a partir da figura do detetive: esta figura perturba o método inicial do filme. Como afirmou Jean-Luc Godard numa entrevista ao Le Monde este ano à época do Festival de Cinema de Cannes, é preciso ter pelo menos cara de mudar antes que ter cara de nada fazer. “Bouger”, eis a questão: é deste verbo que também se valeu Godard na entrevista aludida, ecoando agora com o título de um antigo filme de Guiraudie. Como uma serpente, Um estranho no lago desliza na mata de suas mutações.

O que vemos no filme? Homossexuais transando. Exceção: há um homem que aparece por ali sem intenções sexuais. Senta-se e põe-se a conversar com um homossexual. É a ocorrência da amizade à beira do sexo. O lago, o sexo. À beira: conversas, necessidades afetivas de compreensão e atenção. Mistérios surgem. Um homossexual é morto. Suspeito aparente: o bonachão homem que conversa e conversa e não quer transar com ninguém. Evolução da trama: o perigoso parceiro do homossexual que dá trela ao desconhecido (aparentemente não-homossexual) que chega por ali somente para conversar e matar a solidão, este parceiro degringola (=transforma-se em, muda para) para a personagem do criminoso que no fim metamorfoseia aquilo que vinha sendo uma orgia de carne numa retaliação de carnes, sobrando inclusive para a criatura do detetive que se pusera a investigar o crime no lago.

Exacerbado. Exagerado. Perigoso. Molestador. Um estranho no lago é um oásis no cinema. Sob qualquer ângulo que se mire. É pena que suas altercações não aportaram por aqui. Precisaríamos dela nestes tempos de hipocrisia moral.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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