O Fim do Leitor: OU, Algumas Notas a Partir da Sociedade Midíocre
Em A Sociedade Midíocre, como em todos os seus livros, Juremir lida muito com o conceito de imaginário
“Talvez em 2063, ninguém leia. O filme, ou seus descendentes tecnológicos, serão a única literatura. E os romances de Nabokov serão notas de pé de página nas filmografias de Richardson, Skolimowski, Fassbinder”, anota o crítico norte-americano Richard Corliss no fim de seu ensaio (1998) sobre Lolita, o filme de Stanley Kubrick realizado em 1961 a partir do livro de Vladimir Nabokov. Mais adiante, contrapõe outro exercício de antecipação: “Em outro produto futurista todos os filmes terão sido destruídos num bombardeio nuclear e só restam livros. Então um leitor poderá encontrar este volume e perguntar: ‘Quem é este infortunado Kubrick’?”. Em Não contem com o fim do livro (2009) dois leitores maravilhosos, o roteirista francês de cinema Jean-Claude Carrière e o romancista-ensaísta italiano Umberto Eco dialogam sobre a paixão dos livros e as mutações que ela está enfrentando apontando sempre para a esperança do leitor apaixonado.
Em A sociedade midíocre – passagem ao hiperespetacular (2012) outro leitor deslumbrante, o brasileiro Juremir Machado da Silva, não se vale das visões meio metafóricas de Corliss (imagine se... e por aí vai) nem se entrega à sua parcialidade de leitor como Carrière e Eco. Juremir, em seu novo livro, quer ser um jornalista dos novos tempos, isto é, quer observar o que está acontecendo, aparentemente com isenção, com objetividade, embora isto, no mundo midíocre (e também medíocre), seja complicado. Que é que se faz? Um jornalista como Juremir tem de usar toda a sua argúcia de filósofo para enxergar o que precisa ser enxergado: que os dias do leitor estão contados. Verdade ou mentira, ninguém pode hoje saber com certeza. Mas os indícios, está vendo Juremir, estão por toda a parte.
“O fim dificilmente apresenta-se de forma abrupta. É um processo.” evoca Juremir antes que alguém lembre os excessos de impressões que poderiam indicar o contrário daquilo que o ensaio antevê: “Está escrito: a escrita cumpriu literalmente o seu tempo.” E o leitor também: o que virá agora talvez seja o homem que pensa por imagens, não aquelas imagens de antes da escrita, desenhadas nas cavernas pré-históricas, mas uma imagem cada vez mais disforme, mais difusa, mais um jogo de luzes que altera o próprio olhar.
Num determinado momento de A sociedade midíocre Juremir, referindo a modernidade, lembra que foi nela que se inventou o cinema e o automóvel a partir da cinética. De automóvel não falo: é um objeto que ainda não tive a prazer de fazer desaparecer como conceito. Mas aludo ao cinema, um objeto que se tornou conceito dentro de mim e um conceito que afinal é consumido como objeto pelo crítico. O cinema é imagem, se diz. Mas entre uma imagem de Michelangelo Antonioni (muito próxima da literatura) e uma imagem de Steven Spielberg (próxima de alguns quadrinhos mais aventurescos) vai uma distância. Antonioni pode ser aquele leitor que está desaparecendo, identificado por Juremir no fim da escrita. Spielberg pode ser o ancestral dos herdeiros tecnológicos do cinema, como está na hipótese narrativa do ensaísta Corliss. O cinema, segundo outro realizador junto das letras, o francês Robert Bresson, é uma escrita. E que se dirá do francês Eric Rohmer poluindo suas discretas imagens com frases (faladas) que têm o espírito elaborado das frases (escritas) —literatura em imagens, para desespero dos puristas de conceitos? Pela leitura de A sociedade midíocre este cinema, juntamente com os livros, estaria no fim, pois o fim, mais do que da escrita, parece ser o fim do leitor: o fim de gente como Antonioni, Rohmer, Carrière, Eco, e o fim do próprio Juremir, que, paradoxalmente (ou jornalisticamente), parece ver tudo sem desespero nostálgico. Embaralhando os conceitos, pergunta-se: um outdoor é imagem ou é escrita, considerando que a própria escrita repuxa ali para a imagem, o desenho? E aquilo que está escrito no outdoor não pode, aqui e ali, ser um poema? Pode, no mundo turbulento das imagens desenfreadas, surgir um sopro poético escondido nos excessos?
Independemente de se concordar ou não com as conclusões a que chega Juremir em A sociedade midíocre, é inegável que ele atinge em seu livro um dos mais elevados graus de seu poder de linguagem e de pensamento. E, ironia sobre ironias (processo que está sempre no âmago do estilo de escrever de Juremir), para anunciar “aos passageiros” o fim de tudo isto. Talvez em 2063 ninguém leia. Talvez também neste ano todos os filmes tenham sido destruídos num bombardeiro nuclear. Que restará? Que existirá?
P.S.: Em A sociedade midíocre, como em todos os seus livros, Juremir lida muito com o conceito de imaginário. Em A sociedade midíocre está anotado: “O imaginário sempre é uma produção capital sem autoria.” Em As tecnologias do imaginário (2003) Juremir afirma, parodiando o francês Jacques Lacan, que “o homem só existe no imaginário”, lembrando que “a palavra imaginário virou moda na última década do século XX.” Na verdade, durante uma discussão sobre o filme Meu tio da América (1980) no Festival de Cinema de Cannes de 1980, o realizador do filme, o francês Alain Resnais, quando lhe diziam que seu filme era sobre a memória, retrucou que a palavra certa era imaginário, pois de memória todo animal é dotado mas somente o cérebro humano pode remontar as imagens retidas na memória, o que formaria o dito imaginário. Somos (ufa Resnais, ufa Juremir!) um imaginário ambulante. Na sociedade midíocre este imaginário está, parece, num labirinto ou num torvelinho.