A Linguagem Que Se Esqueceu

A Ladeira da Memória é o exemplo mais agudo da categoria de linguagem de José Geraldo Vieira

02/04/2015 16:34 Por Eron Duarte Fagundes
A Linguagem Que Se Esqueceu

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Lado a lado com Amor de perdição (1862), do português Camilo castelo Branco, pode-se afiançar que o romance A ladeira da memória (1950), do brasileiro José Geraldo Vieira, contém umas das mais inesperadas e profundas histórias de amor escritas em língua portuguesa. Barroco como Camilo, José Geraldo conhece a potência de cada palavra para evocar situações e emoções humanas; o narrador de A ladeira de memória é um cérebro que percorre por dentro os sentimentos das personagens.

José Geraldo está esquecido há muito tempo. É um destes autores mortos que teve seu apogeu de glória crítica e desapareceu. Certa vez me disseram que eu seria a única pessoa no Brasil que conhecia a obra deste escritor; provavelmente é um exagero, sempre haverá alguém que no silêncio de suas leituras devore os textos deste inventivo romancista; mas a afirmação de meu interlocutor dá bem a ideia do limbo em que se movimenta a excepcional ficção do autor no qual agora me debruço. Quando há alguns anos a Editora Planeta do Brasil reeditou A ladeira da memória, fiei-me ingenuamente que o público brasileiro pudesse reencontrar a arte deste Vieira, tão grande quanto o outro, o Antônio Vieira dos impagáveis sermões. Mas, ingenuidade das ingenuidades, sabe-se lá o que torna um escritor vivo para os pósteros! Talvez a sobrevivência de Graciliano Ramos, o único no Brasil do século XX cujo rigor de linguagem se aproximaria dos picos alcançados por José Geraldo, se deva mais à sua biografia de esquerdista e não à transcendência de sua literatura; como José Geraldo e seus livros eram considerados como apolíticos e alienados, a voracidade das esquerdas no Brasil parece tê-lo amassado, preferindo escritores inferiores como José Lins do Rego, Rachel de Queirós e Jorge Amado, habitualmente requeridos nas escolas brasileiras. Outros esquecidos por motivos idênticos que mereceriam reavaliação: o mineiro Cyro dos Anjos e o carioca Gustavo Corção.

A ladeira da memória é o exemplo mais agudo da categoria de linguagem de José Geraldo. Salienta-se aqui mais do que nunca a assertiva de Cassiano Ricardo: “Quando se procurar saber até onde a poesia pode interessar à técnica do romance moderno, a obra de José Geraldo Vieira será estudada num de seus mais fascinantes aspectos.” O que espanta no texto deslumbrado e deslumbrante de José Geraldo é que, mesmo sem fugir à raiz clássica da narrativa literária, vemos, como resultado de frases transbordantes, a produção daqueles mesmos efeitos revolucionários gerados pelo experimentalismo formal dum João Guimarães Rosa ou duma Clarice Lispector. A beleza literária em seu mais puro estado.

A ladeira da memória é um texto de evocação. As cenas iniciais se passam dentro dum trem. “Taciturno e absorto, muito embora esteja bem junto de meu velho tio-avô —um velho desembargador aposentado— viajo rente à janela do vagão D do trem noturno, no último banco do lado direito.” O narrador do livro é inicialmente um ouvido que escuta a tagarelice de seu tio-avô enquanto viaja de trem em busca das lembranças do passado; é uma viagem para um cenário, mas igualmente uma viagem para dentro de si mesmo ou do que a personagem foi um dia. As facilidades do objetivo texto clássico é logo desmanchada por inesperadas metáforas cerebrais vindas da boca de tio Rangel; as metáforas, em José Geraldo, são um mergulho interior nunca visto em nossas letras com idêntica profundidade. “—Esta escuridão, que nos parece delimitada apenas porque lhe estamos no centro, é mero fragmento sucessivo da treva que banha esta metade do mundo.” Bom leitor do francês Marcel Proust, José Geraldo entrelaça o barroquismo de suas orações pelo uso preciso e cadenciado de conjunções, conjunções que captam ritmo e sentido para as frases. “Na verdade, meu tio queria fazer tempo enquanto não atingia Volta Redonda, onde ia visitar o filho, engenheiro de altos-fornos. Não tendo conseguido leito no Cruzeiro, visto haver resolvido a viagem já de tarde, e tendo coincidido essa viagem com a minha resolução de ir aplacar os nervos numa fazenda entre Resende e Itatiaia, principiava agora a querer abordar ‘certo assunto’ desde que saíramos do Rio, pretextando que eu tinha de tolerar o lenga-lenga dum velho a fim de não acabarmos dormindo ambos de boca aberta, hediondamente, como acontece a todos os passageiros do mundo em todos os trens noturnos, já que apenas os previdentes e cautelosos acabam usufruindo num leito as prerrogativas de saberem na quinta-feira o que farão no sábado.” Depois que tio Rangel desembarca em Volta Redonda, pouco a pouco, com seu lento jeito barroco de esticar as frases e observações, José Geraldo vai descortinar diante dos olhos de sua personagem a “ladeira da memória”. “Estou agora sozinho rente à janela do vagão, vendo passar clarões delimitados, labaredas retilíneas como esculturas de Béothy, retábulos quadriculados, reverberantes, em superfícies de cimento armado. Volta Redonda, acesa na noite, lembra no negror  uma tela abstracionista.” Algumas páginas e metáforas adiante, aparecerá Renata, o centro da ladeira da memória da personagem-narradora, a mulher casada a quem Jorge, o protagonista que está narrando, ama; José Geraldo descreve a relação amorosa com um platonismo à Henry James, apurando sensações linguísticas e humanas absolutamente inéditas no território nacional. “Ficamos sentados no chão em cima duma espessa manta dobrada, as pernas estendidas por sobre a grama, os dorsos apoiados na madeira. Vaga-lumes já não vivificavam o gramado e os tufos. O mar não tinha ruídos senão de lento bater de ondas durante a maré preguiçosa. Às vezes o luar abria escamas tremeluzentes à esquerda da ilha Brocoió: víamos então o fervilhar dos cardumes sob a superfície. De mãos dadas nos olhávamos calados. De quando em quando Renata apurava o ouvido, virando o busto na direção da casa, atenta e cautelosa quanto à prima Carmen e à tia Noêmia. Em seguida se virava para mim, sorria, colhendo ao longo do jasmineiro, ao alcance dos dedos, flores e mais flores até virarem massa, dizendo: ‘Ai, ai, Renata, muito juízo!’ As horas depressa passavam nestas contemplações recíprocas; acontecia gotas de orvalho pingarem sobre nós. Ela exigia que eu ficasse calado; mostrava-me a casa, fazia-me perceber o perigo. Em dado instante me fez pousar a cabeça sobre o seu colo e ficou a afagar-me os cabelos, evitando acariciar meu rosto. E abaixava um pouco o semblante, olhava-me de perto. Sua fisionomia trigueira tomava um ar de doçura, quase de convalescença, como se tudo aquilo fosse pura fantasia, sonho mútuo, eu em Ipanema, ela em Paquetá, unidos só pela imaginação. Depois a cena se alternou. Soergueu meu busto e me deitou no seu colo; não consentiu que lhe acariciasse o rosto, deixou apenas que fizesse das mãos unidas uma concha onde apoiar o vão tépido de seu crânio que a cabeleira afofava.” A morte de Renata, por tuberculose, antes disto os acompanhamentos da doença, finalmente a forma abrupta com que Jorge sabe do desenlace numa reunião intelectual-social: tudo merece da pena de José Geraldo a sensibilidade e a sinceridade de sempre.

Diz-se que a história contada em A ladeira da memória é autobiográfica. Há de fato muitos lances autobiográficos vizinhando com o episódio central. Como o romancista, a personagem de Jorge é médico-radiologista e escritor de romances; as características da ficção de Jorge são as mesmas de José Geraldo (romances-rio, tramas enciclopédicas, nervuras da alma) e ainda aparecem nas páginas figuras habituais das letras brasileiras da época, como um Oswald de Andrade sentado com Jorge numa sessão de autógrafos ou José Lins e Graciliano conversando com Jorge nas dependências da Livraria José Olympio no Rio.

Sempre que volto ao romance, o principal na literatura brasileira em todo o século XX, as palavras finais do texto, que fazem perambular conselhos de tio Rangel a Jorge, me parecem endereçadas à insensibilidade dos tempos  atuais (tempos que começaram há muito tempo, pelo menos há quarenta anos), uma insensibilidade que se lixa para romances de alta voltagem moral como este A ladeira da memória.

“Será possível, Jorge, que você tenha ficado como esses infantes que, perplexos e atônitos, na Espanha ou na Rússia, quais pássaros tangidos pela fuligem das revoluções, não veem nunca os ninhos nos pomares nem ouvem mais o sussurrar das fontes?!”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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