Sem Medo da Linguagem Literária

Juremir Machado da Silva arrisca todo seu ser na composição da linguagem exuberante, literatura mesmo, meditação de verdade, metáforas em voo

16/03/2017 23:49 Por Eron Duarte Fagundes
Sem Medo da Linguagem Literária

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O texto que segue foi escrito em maio de 1995. O texto trata de um dos primeiros livros do gaúcho Juremir Machado da Silva. O texto chegou a sair no espaço de Juremir no jornal porto-alegrense em que ele trabalhava na época. A literatura e a carreira de Juremir foram aos poucos tomando rumos diferentes nas décadas seguintes. No entanto, Cai a noite sobre Palomas (1995) permanece um marco das letras gaúchas e ilumina certa permanência, na literatura de Juremir, do gosto por uma certa escrita, a despeito das mudanças que o tempo e o mundo possam ter trazido para o escritor-jornalista. Demais, reabilitar meu texto sobre este romance é tentar reencontrar algumas ideias sobre fazer literatura que, sobre em algum momento terem envelhecido, podem ser pontos de partida para redescobertas. (Eron Duarte Fagundes, março de 2017).

31.05.95

Juremir Machado da Silva arrisca todo seu ser na composição da linguagem exuberante, literatura mesmo, meditação de verdade, metáforas em voo, que ele apresenta diante do leitor. Na história literária, poucos se aventuraram tanto em fugir do lugar-comum verbal, sem medo de cair na verborragia, a hemorragia das palavras; bem-sucedidos como Juremir, então, é um achado, um prazer para os contemporâneos, que privam amiúde com seus textos em jornal. Penso nos leitores da época de Machado de Assis, que tiveram acesso a muitas crônicas que certamente não chegaram até nós: prazer único de contemporâneos. Juremir articula o barroco e o cerebralismo como faz muito não se topa na literatura brasileira; não temo errar: é preciso recorrer ao maior escritor brasileiro do século XX, José Geraldo Vieira, para encontrar parâmetros de barroquismo e engenho mental.

* * *

Cai a noite sobre Palomas foi longamente germinado. De 1988 a 1995 o romance deve ter tido as mais diversas versões. Em 08.08.93 Juremir publicou em seu jornal um texto que me delicia pensar tratar-se de um dos embriões do livro: “Palomas, Paris, Paros”: “Há um lugar na minha mente em que os mundos se confundem. Há um lugar no mundo feito pela confusão em minha mente.” Texto básico da memorialística contemporânea, este artigo (haverá melhor?) de Juremir é o holofote da trajetória mítica de nosso escritor: suas raízes fronteiriças, sua ascensão cultural nas redações da capital, suas andanças europeias. “Prosaico, habito uma região inexistente, o ponto de intersecção entre Palomas, Paros e Paris.” Diverte-me elaborar a seguinte ficção crítica: “Palomas, Paris, Paros” é a origem de Cai a noite sobre Palomas.

* * *

Juremir é a nossa antena. Em Cai a noite sobre Palomas capta as principais vozes deste fim de milênio. À sua maneira, intelectualmente, verbo e pensamento soltos. Questionando a importância do saber no mundo atual, Juremir nos devolve um paradoxo, conclusão tirada pelo leitor: o saber sempre vale a pena, mesmo que não sirva para mais nada, quando nos permite conhecer um livro tão surpreendente e novo.

A festa de palavras promovida por Juremir, as ideias que se chocam como carrinhos num parque de diversões são a materialização das grandes experiências humanas e estéticas de Juremir. Cai a noite sobre Palomas não é propriamente autobiográfico, senão naquele sentido de que tudo é autobiográfico, conforme o diretor de cinema Federico Fellini: até quando se escreve (ou se filma) sobre formigas se está sendo autobiográfico. No romance há uma realidade ideal, com rastros da realidade fática que acompanha o escritor enquanto cidadão real: a chuva descrita no livro semelha uma chuva real vista em algum momento, mas a imaginação a metamorfoseia; alguns diálogos de ideias podem estar inspirados em algumas conversações vivenciadas em bares de qualquer lugar do mundo, porém o contexto é outro.

Sem a experiência europeia de Juremir, é claro, Cai a noite sobre Palomas não seria o mesmo livro. Assim como não seria o mesmo sem sua experiência jornalística ou sem sua grandiloquentemente bela profissão de fé nas construções verbais raras. Marcel Proust ou André Gide não seriam o que são, ficcionalmente falando, sem seu homossexualismo. Franz Kafka não teria esta forma literária sem o seu judaísmo. O purismo de Machado de Assis se deve à metade açoriana de suas origens, sua amargura filosófica à outra metade mestiça. Juremir é o homem do mundo, o observador jornalístico, o homem-pena (viva Flaubert); e Cai a noite sobre Palomas materializa estes muitos seres, estas vozes tantas que pulsam nas veias do escritor.

* * *

Retorno ao problema inicial. Falar das questões estruturais de Cai a noite sobre Palomas é para mim um problema. Escrever sobre os fatos literários do romance de Juremir me traz a mesma insatisfação que sinto ao ler texto de outros sobre Juremir. Os textos-sobre, para usar duma expressão do crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, não podem revelar todo o arsenal estético dum ficcionista. Só uma expressão poética da crítica poderia montar uma escritura que desse a ideia do que é o romance de Juremir: fundemos uma poética do ensaio crítico. Tergiversar, fugir às questões diretas. Buscar uma imagem, não uma ideia: uma aproximação, não uma influência. A imagem: os tipos provincianos (raspavalatas), pescados pela sonoridade do texto. A aproximação: os caminhos do barroquismo brasileiro de José Geraldo Vieira a Juremir Machado da Silva, da chuva que determina o transe duma mulher em frases assombrosamente novas e sinuosas em A mulher que fugiu de Sodoma (1931) à chuva apocalíptica que abre Cai a noite sobre Palomas.

* * *

Livro-crônica, livro do pensamento-personagem, o romance de Juremir pratica algumas ideias técnicas que, mal realizadas, aborreceriam como ficção: exacerba na linguagem (está mais perto de Virginia Woolf do que do muro na estufa de palavras em que muita vez se transforma a arte de Patricia Bins), expõe e expõe-se como um pensador ficcional (evoco o fracasso festejado do grande  ensaísta italiano Umberto Eco em seu romance O nome da rosa, 1988, contrastando-o com o triunfo de um ficcionista nato como o alemão Thomas Mann em Doutor Fausto, 1947), faz de determinados trechos uma coleção de crônicas em forma de ensaio ligadas pelo fio moral nem sempre visível que orienta todo o livro e, de resto, toda a obra de Juremir, esta questão da relatividade do conhecimento, à falta de melhor expressão. Juremir acerta onde a maioria erra e não deixa seu rio de palavras transbordar: tem o volume d’água exato para o seu temperamento literário, não há destons, nem linhas disformes.

* * *

Saibamos, pois, cair sobre a noite de Palomas, espíritos nus de nossos primeiros anos. Cada texto de Juremir (em jornal ou em livro) é parte de um conjunto coerente, em andamento de obra para obra, cuja grande função é tornar-nos mais e mais íntimo do mundo das palavras.

FIM DO TEXTO DE 1995.

TRECHOS.

“Será o conhecimento capaz de elevar ainda um homem à glória, de extraí-lo de sua condição social desfavorável e de fazê-lo um vencedor? Ou os livros desorganizam as identidades frágeis e defenestram pobres-coitados megalomaníacos e ridículos?”

“Vila e vidraça eram um único signo na mente de Paulo Bicca.” Esta é a frase que abre o romance. Cerca de trinta páginas depois, lemos: “Vila e vidraça parecem aos olhos dos viajantes uma única figura.” A transparência do vilarejo no uso quase simbolista da mesma consoante labiodental, “v”?

Cai a noite sobre Palomas foi publicado originalmente em 1995 pela editora gaúcha Sulina, trazendo considerações de orelha do romancista gaúcho Moacyr Scliar e um prefácio do jornalista paulista (então trabalhando entre nós, no mesmo jornal de Juremir) Augusto Nunes.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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