Chantal Akerman: Uma Apario Inusual no Cinema
O cinema da belga Chantal Akerman passa ao largo da visibilidade comercial
(Chantal Akerman é uma realizadora cinematográfica pouco conhecida no Brasil. Morreu aos 65 anos, em 05 de outubro de 2015. Mas seus filmes, como A prisioneira, analisado abaixo, são suficientes para a perenizar, ainda que seja entre alguns poucos que amam um cinema arrojado mesmo em suas obscuridades).
O cinema da belga Chantal Akerman passa ao largo da visibilidade comercial. Houve um obscuro documentário brasileiro de Gustavo Beck e Bernardo Luiz Ferreira, Chantal Akerman, de cá (2011), que tentou lançar pontos de luz sobre a figura humana e cinematográfica de Chantal, filmando-a num longo plano fixo onde a cineasta dá suas tintas complexas sobre a realização cinematográfica e revela sua paixão especialmente pelo cinema rigoroso do francês Robert Bresson.
O inusitado rigor formal bressoniano aparece esplendorosamente em A prisioneira (La captive; 2000). No entanto, é um pouco como se um roteiro do francês Eric Rohmer (com suas tergiversações amorosas e intelectuais à maneira de um romancista do século XIX) fosse filmado pelas inquietações experimentais e modernas do franco-suíço Jean-Luc Godard. Chantal se aproxima de seus mestres de maneira imperfeita mas soberana e atinge o que se poderia chamar uma originalidade da imperfeição: seu cinema intelectual e elaborado acaba por provocar um fascínio inevitável.
A ideia inicial de A prisioneira é o romance La prisonnière (1923), volume V de Em busca do tempo perdido, mas as relações —temáticas ou formais— do filme de Akerman com o romance de Proust (ou com a própria literatura de Proust, onde cada frase ou parágrafo ou romance remete ao próprio conceito estrutural de sua literatura) são escassas, quase inexistentes. É como se o texto de Proust dissesse à cineasta coisas que na verdade não estão no texto mas a impulsionam ao ato de filmar. Mais ou menos o que ocorreu com o realizador gaúcho Fabiano de Souza, que atribuiu ao romance gaúcho O louco do Cati (1942) a culpa da existência de seu filme A última estrada da praia (2011). O leitor-espectador procura as conexões e as intersecções mas tem dificuldade em topá-las. No caso de A prisioneira, o filme de Chantal, a relação tensa e aguda entre Simon e Ariane, conflitando-se no binômio amor e posse, o que se tenta é emular o que se dá entre Albertina e o narrador na arte de Proust; igualmente o tema proustiano do bissexualismo, com a atração de Ariane por mulheres, vai assomar. Mas é muito pouco, são referências fragmentadas, mais citações (à maneira de Godard, aí) do que algo do tipo filme extraído de romance.
Mesmo com estas reservas de natureza crítica, o filme de Akerman estabelece profundas contemplações sobre os relacionamentos humanos à luz do terceiro milênio; com diálogos enviesadamente estranhos e muitos planos contemplativos, A prisioneira pode aprisionar-nos em seu rigor intelectual mas é ao mesmo tempo um grito libertário dentro de seus postulados. Simon quase não compreende o homossexualismo de sua amada Ariane; não deixa de ser um retrocesso em relação à pan-moral do narrador de Proust. Exclama o narrador de Proust sobre Albertina: “Eu amava-a demais para não sorrir do seu mau gosto musical!” No fundo, no filme de Akerman Simon ama demais Ariane para naufragar —apesar de tudo— diante das preferências sexuais de sua amada.
O elenco é uma das lapidações de Chantal, no que ela segue de perto e à distância os pudores de Rohmer e os rigores de Bresson. Como produtor, ressalta o nome do português Paulo Branco, sempre investindo em obras difíceis ou pouco acessíveis ao público habitual; Branco, lembre-se, produziu filmes de gente como o português Manoel de Oliveira e o suíço Alain Tanner, cujas existências no circuito comercial é muito rarefeita.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br