O Encantamento da Rotina
Chantal nasceu em Bruxelas, da mesma maneira que outra realizadora, Agnes Varda
Introdução: “vejo muita gente desatinada com a escolha de jeanne dielman, 23, quai du commerce, 1080 bruxelles de chantal akerman como o melhor filme de sempre pela revista sight and sound, provavelmente por gente que nunca o viu ou que se assustou com as 3 horas e meia de filme com pouquíssimos diálogos.
Durante anos reinou citizen kane de orson welles, com uma ligeira intrusão do vertigo de alfred hitchcock. sou fã do welles (de todo o welles), como do hitchcock (de todo o histchcock) mas também acho que o filme da chantal akerman é um filme do caralho. lá está. hoje é assim e amanhã é assado. tudo depende dos estados de espírito. e se a minha escolha seria para outras latitudes cinematográficas, dou comigo a pensar que nunca escolheria o filme de akerman somente por esquecimento. não é um filme de todos os dias. e todos os dias mudo de vontades, de gostos, de desejos, e de filmes que para mim são os melhores do mundo.
Dito isto, estou muito contente com a escolha do filme, e até com os 100 escolhidos, mesmo que até tenha o get out do jordan peele (estar nos 100 é um descaramento) e mesmo que falte um griffith (poderia ser um, só unzinho).
Que viva a chantal akerman! que viva o cinema!” (Alvaro Romão, Facebook, 2022)
O Encantamento da Rotina
(Texto originalmente escrito em 29.10.2011, nunca publicado; uma de minhas muitas produções críticas engavetadas, ou, hoje em dia, postas em arquivos de computador)
Dá-se a cena quase lá pelo final de Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23 quai du commerce, 1080 Bruxelles; 1975), dirigido pela cineasta belga Chantal Akerman, nome ignorado pelas discussões cinematográficas destas décadas afora no Brasil e que somente há alguns anos neste milênio, a partir duma mostra de seu cinema no centro do país, passou a chamar a atenção de nossos pensadores tupinambás. O quadro é longamente fixo. E a imobilidade em cena é tão grande que a coisa toda se chega duma espécie de fotografia pictórica. A mulher está sentada num sofá, sem se mexer, olhando para o nada, como se estivesse num vazio. Há ainda dois outros sofás na pequena sala, mas eles estão vazios. Vemos um quadro na parede em que está desenhado um vaso com flores. Damos com um vaso de flores repousando sobre uma mesinha de centro. Deparamos com um móvel onde, entre livros, se destaca um velho rádio desligado. A cena permanece muda, e imóvel quase o tempo inteiro. Ocorre um único movimento que descaracteriza o estado fotográfico da imagem: é quando a mulher movimenta brevemente o braço direito para junto do rosto e depois o repõe no braço do sofá. De uma certa maneira todo Jeanne Dielman obedece ao conceito de imobilidade desta sequência: o que Chantal propõe é a observação cinematográfica exasperante do cotidiano duma mulher que, para manter uma vida razoável com seu filho num apartamento de Bruxelas, se vende a alguns homens em seu próprio lar e amiúde cuida do bebê duma vizinha; mais do que todos os realizadores ocidentais, mais inclusive que o alemão Wim Wenders, Akerman aprendeu, aos 25 anos (a idade que tinha quando fez este filme, quase a mesma idade do americano Orson Welles quando rodou Cidadão Kane, 1941), com o japonês Yasujiro Ozu que a rotina tem seu encantamento, desde que quem filma esta rotina conheça apropriadamente o “olhar do cinema”. Ao longo de mais de três horas de projeção, certas coisas aparentemente se repetem na narrativa do cotidiano duma dona de casa: o café da manhã, as subidas e as descidas do elevador, a recriminação da mãe ao filho que enquanto come também deita os olhos a um livro ao lado. Só aparentemente as coisas se repetem: na verdade Akerman cria sempre um olhar novo para cada episódio assemelhado. Não se trata, aqui, do neodocumentário alemão dos anos 70, como Não me venha falar em destino (1979), de Helga Reidemeister, onde também se tratava das rotinas duma mãe de família; é uma outra coisa, com um distanciamento de câmara (narrador mais brechtiano-bressoniano, diferente da interferência cinema sobre a realidade em Reidemeister).
Curiosamente, na penúltima sequência, é que a ação sai da rotina: é quando a mulher mata um de seus copuladores, enfiando uma tesoura no pescoço do homem. Se foge ao padrão interno das demais imagens do filme, não foge à sua estrutura interna, de muita estaticidade. E de fato é um prolongamento de toda a demência da ação fílmica: tanto seus silêncios de fala e gestos de todo o filme quanto sua ação final tresloucada (ela não fala nada, mas o gesto é como um grito) são formas de demência.
Curiosidades: Chantal nasceu em Bruxelas, da mesma maneira que outra realizadora, Agnès Varda, esta radicada na França, o que pode explicar em parte ter obtido um reconhecimento internacional enquanto Chantal permaneceu injustamente na obscuridade. Delphine Seyrig carrega com intensidade a cruz de doméstica em Jeanne Dielman; Seyrig ficou caracterizada como protagonista de outro filme amaldiçoado por difícil (embora hoje pareça mais decodificável), O ano passado em Marienbad (1961), do francês Alain Resnais.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br