Cidadão Kane

Cidadão Kane é talvez o único filme falado americano que parece tão novo hoje quanto no dia em que estreou: palavras de Pauline Kael

10/11/2015 08:39 Por Eron Duarte Fagundes
Cidadão Kane

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Num ensaio de 1971, a norte-americana Pauline Kael começava seu estudo de um dos mais prestigiados filmes da história do cinema observando: “Cidadão Kane é talvez o único filme falado americano que parece tão novo hoje quanto no dia em que estreou. Talvez pareça ainda mais novo. Muita coisa do filme que era convencional e banal em 1941 ficou tão passado que foi esquecida e se tornou nova.” Passados mais de sessenta anos do aparecimento de Cidadão Kane (1941), o filme mítico de Orson Welles, passados mais de trinta anos do famoso ensaio de Pauline, as palavras iniciais e certeiras desta privilegiada espectadora de cinema permanecem aterradoramente atuais.

Eu tinha 24 anos quando, em novembro de 1979, deparei pela primeira vez com Kane, a mesma idade que tinha Welles quando o realizou. Abaixo segue, sem alterações nem de pontuação (lá vão os mesmos pontos, vírgulas e parênteses, inclusive coisas hoje em desuso como tremas, certos hífens), o entusiasmado artigo que escrevi naquele distante novembro de minha juventude.

 

O PARAÍSO CINEMATOGRÁFICO

 

Parece impressionante que, bem antes dos grandes movimentos de renovação do cinema, contemporâneo ainda ao neo-realismo, Orson Welles tenha realizado em Cidadão Kane (Citizen Kane; 1941) uma antecipação dos filmes fantásticos que hoje atraem os grandes e os pequenos cineastas. Como A doce vida (1960), de Federico Fellini, a primeira obra filmada por Welles é um exemplo de felicidade criativa; apesar dos imitadores e da corrosão do tempo, permanece intocável e nova em seu tema e em sua linguagem cinematográfica.

É extremamente original a forma como Welles encadeia os planos, que no início de Cidadão Kane se cruzam de maneira lépida e trepidante, como um documentário de ficção apaixonado, apaixonante, exagerado por vezes, mas sempre lúcido ao materializar  imagens arrojadas e idéias grandiloqüentes. O toque de mistério e fantástico que as sombras montam no interior do filme é completado por uma densa aproximação de câmara até uma placa onde se lê: “entrada proibida”; estas cenas iniciais foram muitos anos depois aproveitadas pelo cineasta francês Alain Resnais para abrir seu Providence (1977), um trabalho de Resnais que mistura a linguagem de Welles com as veleidades introspectivas do sueco Ingmar Bergman.

Ao morrer, o milionário Charles Forster Kane pronuncia a palavra Rosebud, cujo significado incompreensível chama a atenção de seus biógrafos; a investigação dum jornalista sobre a vida deste excêntrico rico americano vai desencadear o processo narrativo de Cidadão Kane. E neste sentido as linhas narrativas desta audaz obra-prima de Orson Welles representam um ancestral da maneira como hoje são realizados muitos documentários de ficção; por exemplo, um dos mais importantes filmes brasileiros contemporâneos, Coronel Delmiro Gouveia (1977), segue didaticamente algumas regras de construção de Cidadão Kane, ao fazer com que a figura de Delmiro passe ao espectador através dos depoimentos de mulheres, amantes, amigos, pessoas enfim que se relacionaram com a personagem fictícia-real de que trata a história.

Claro é que o jornalismo cronístico dos documentários modernos possui uma frieza que não existe no temperamento turbulento de Welles. E é sintomático que Welles, um ser inchado de si mesmo, preocupado com as suas inspirações e com a sua verdade, tenha escolhido por tema uma criatura como Kane; evocando o romancista francês Gustave  Flaubert sobre Bovary, dir-se-ia que Kane é Welles. Como demonstram as explosões formais, certa obscuridade de análise e formas.

À medida que o filme progride, o estilo se trasmuda; as seqüências, antes tão ágeis e saltitantes, vão sendo unidas por sentimentos amargos. Mostrando primeiramente o homem orgulhoso, adorado pelo povo, dono do poder, Welles abandona depois em alguns momentos este rigor jornalístico para se afundar na ficção, descrevendo em Kane uma alma solitária e marcada por deficiências humanas. Seu caso com uma cantora lírica e sua derrota nas eleições estimulam uma breve conscientização lembrando uma certa influência sobre os filmes políticos da década de 70.

O clima mágico de alguns movimentos, a tendência insólita na época de buscar no cinema uma arte de ilusionismo o diferencia não só dos padrões de seu tempo, mas ainda de muitas obras que se inspiraram em Cidadão Kane; isto talvez o aproxime, em sua forma muitas vezes opressiva e fechada apesar dos caracteres de super-espetáculo, do estilo do cinema de estúdio, onde um espaço reduzido serve para que o cineasta crie uma particular dinâmica cinematográfica. São fantásticos os planos que unem o exterior ao interior da mansão de Xanadu, onde está moribundo o velho Kane; e o comentário musical é adicionado à linguagem com raro senso estético, o que dá bem o valor dum cineasta de punho forte, barroco mas consciente.

Ao cabo, Orson Welles volta à seqüência inicial, quando a câmara se aproxima do portão da residência de Xanadu e da placa que anuncia, misteriosamente (como aquela que dizia “Providence” no filme de Resnais), “entrada proibida”. Mas antes deste movimento final o realizador queimou os pertences do falecido cidadão Kane, depois de voar com sua câmara sobre objetos barrocamente dispostos; e o jornalista, indagado sobre o mistério dum homem e duma palavra que disse, afirma que um vocábulo é apenas pedaço do enigma, que abrange muito mais, a natureza humana.

Também impressiona em Cidadão Kane é que uma obra tão altissonante e fantástica, tão rebelde em suas formas tenha raízes tão próximas a todos nós e uma verdade final de grande unidade, como uma reflexão sobre a ambição, a morte e um obscuro sentido da nossa existência. Orson Welles é um destes artistas que a linearidade contemporânea tornou raros: o artista da tormenta, da dúvida, da impossibilidade de completar alguma coisa.

(Eron Duarte Fagundes, texto de 11.11.1979)

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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