Para o Leitor Atilado

Jacques Derrida é um dos principais pensadores franceses do século XX

07/03/2016 10:06 Por Eron Duarte Fagundes
Para o Leitor Atilado

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Jacques Derrida é um dos principais pensadores franceses do século XX. Sua obsessão por quebrar a linguagem em seus elementos constituídos e fazer deste pensamento-verbo um esteio sociológico o tornou suspeito aos olhos duma racionalidade política que teimava em existir diante dos tumultos contraditórios da centúria. Seu livro mais referido é Da gramatologia (De la grammatologie; 1967); é sintomático que o filósofo francês tenha escrito o que escreveu na mesma década em que o ficcionista argentino Júlio Cortázar ambientava o início de O jogo da amarelinha (1963) em Paris mesmo, o coração da grande cidade europeia, rue de Seine e adjacências, e o realizador cinematográfico Jean-Luc Godard propunha autênticas esquizofrenias formais. Esta ideia de desconstrução que gerou o pensamento de Derrida e permitiu as experiências estéticas de Cortázar na literatura e Godard no cinema talvez já estivesse em ebulição no meio social, mas sem as organizações teóricas ousadamente propostas por Derrida se arrastariam por algum tempo para mover-se (o verbo francês “bouger”, usado por Godard numa entrevista para expor a apatia dos agentes sociais ou artísticos de hoje, dá bem a ideia deste movimento para fora do já existente).

Da gramatologia tenta captar mesmo os movimentos da linguagem no instante em que esta se forma. “Or par un mouvement lent dont la nécessité se laisse à peine percevoir, tout ce qui, depuis au moins quelques vingt siècles, tendait et parvenait enfin à se rassembler sous nom de langage commence à se laisser déporter ou au moins résumer sous le nom d’écriture.” (“Então por um movimento lento cuja necessidade a duras penas se deixa perceber, tudo o que, desde ao menos vinte séculos, tendia e chegava enfim a juntar-se sob o nome de linguagem, começa a deixar-se deportar ou ao menos resumir sob o nome de escritura.”). A linguagem e a escritura, o espermatozoide e a masturbação; a escritura como inseparável do onanismo, a linguagem precede a escritura, a escritura é a linguagem em estado artificial depois de ter sido fala. Derrida parte de dois mestres, igualmente franceses: o natural em Jean-Jacques Rousseau e as construções estruturalistas em Claude Lévi-Strauss. Da gramatologia discute o tempo todo com Rousseau e Lévi-Strauss.

“Le langage est un structure —un système d’oppositions de lieux et de valeurs— et un structure orientée. Disons plutôt, en jouant à peine, que son orientation est un désorientation. On pourra dire une polarisation. L’orientation donne la direction du movement en le rapportant à son origine comme à son orient.” (“A linguagem é uma estrutura —um sistema de oposições de lugares e de valores— e uma estrutura orientada. Digamos preferentemente, brincando a medo, que sua orientação é uma desorientação. Poder-se-á dizer uma polarização. A orientação dá a direção do movimento reportando-o à sua origem como a seu oriente.” O oriente desorienta a origem? A origem está no oriente? O oriente será mesmo orientado? A linguagem como estrutura se orientou de verdade ou foi acaso?

Derrida delira. Ele exige também um leitor atilado para seus delírios. Na frase final de seu opulento ensaio, ele refere a busca deste leitor e também antecipa a ruína crítica que seu sucesso sociológico traria nas décadas seguintes. Ninguém melhor do que Derrida é seu próprio crítico. “On me dira que je rêve aussi; j’en conviens: mais ce que les autres n’ont garde de faire, je donne mes rêves pour des rêves, laissant chercher s’ils ont quelque chose d’utile aux gens eveillés.” (“Me dirão que sonho também; concedo nisto: mas o que os outros não trataram de fazer, dou meus sonhos por sonhos, deixando que as pessoas atiladas tratem de descobrir se estes sonhos têm alguma coisa de útil.”). A própria maneira de pensar de Derrida é um ataque à sociedade da utilidade em que cada vez mais vivemos.

P.S.: Derrida, cuja antropologia se escuda muito na filologia, adota, numa de suas citações cruzadas, uma visão crítica da língua francesa lançada por um antigo, M. Duclos: “le penchant que nous avons à rendre notre langue molle, effeminée et monotone. Nous avons raisons d’éviter la rudesse dans la prononciation, mais je crois que nous tombons trop dans le défaut opposé. Nous prononcions autrefois beacoup plus de diphtongues qu’aujourd’hui; eles se prononçaient  dans les temps de verbes, tels que j’avois, j’aurois, et dans plusieurs noms, tels que François, Anglois, Polonois, au lieu que nous prononçons aujourd’hui j’avès, j’aurès, Francès, Anglès, Polonès. Cependant ces diphtongues mettaient de la force et de la verité dans la prononciation, et la sauvoient d’une espèce de monotonie qui vient, en partie, de notre multitude d’e muets.” (“a inclinação que temos de tornar nossa língua mole, afeminada e monótona. Temos razão ao evitar a rudeza na pronunciação, mas creio que caímos excessivamente no defeito oposto. Outrora pronunciávamos muito mais ditongos que hoje; pronunciavam-se nos tempos dos verbos, como j’avois, j’aurois, e em muitos nomes, como François, Anglois, Polonois, e hoje no lugar deles pronunciamos j’avés, j’aurés, Francés, Anglés, Polonés. No entanto, estes ditongos punham força e variedade na pronunciação, e a salvavam duma espécie de monotonia que vem, em parte, de nossa multidão de e mudos.” No texto em francês, Duclos, na última conjugação de um verbo no imperfeito, usa “sauvoient” (ditongo) no lugar do moderno “sauvaient” (uma simples vogal aberta, “ai” pronunciando-se “é”).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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