A Fauna do Planeta Segundo La Bretonne

Escreveu o crítico francês Jacques Lacarrière que o escritor Restif de La Bretonne foi o único literato camponês de seu século

26/05/2016 23:37 Por Eron Duarte Fagundes
A Fauna do Planeta Segundo La Bretonne

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Escreveu o crítico francês Jacques Lacarrière que o escritor Restif de La Bretonne foi o único literato camponês de seu século. Ganhou as luzes de Paris por sua própria inquietação, como tantos provincianos que aportam às capitais mundo afora. A descoberta austral (La découverte  australe; 1781), cuido que desconhecido em tradução brasileira, não está seus títulos mais referidos, mas é com certeza um dos achados de sua literatura. A origem “natural” (junto da natureza) do grande romancista se salienta em algumas descrições selvagens que ele executa ao longo do livro, encantando por sua criatividade verbal e pela densidade de sua sintaxe: um deslumbramento o mais das vezes.

No começo do livro, com muita naturalidade, o narrador passa a relatar uma viagem de diligência de Lyon a Paris. Sente-se a verdade nas respirações das frases do homem que escreve. É como se ele muitas vezes tivesse feito estas viagens. “Au mois de novembre de 1776, je pris la diligence de Lyon, pour revenir à Paris. Nous étions huit dans la voiture, un Bénédictin, un Comédien, deux Actrices, un Avocat, un Négociant, un Je-ne-sais-quoi, & Moi; sans compter un Singe, six Chiens, trois Perroquets, deux Perruches, un Angola, & les Individus humains qui garnissaient l’impériale.” (“No mês de novembro de 1776, eu tomei a diligência de Lyon, para tornar a Paris. Éramos oito no veículo, um beneditino, um comediante, duas atrizes, um advogado, um negociante, um Eu-não-sei-o-quê, & eu; sem contar um macaco, seis cães, três papagaios, dois periquitos, um Angola, & e os indivíduos que guarneciam a imperial.”). (No filme Casanova e a revolução, 1982, do italiano Ettore Scola, surge numa diligência, uma imperial que conduzia a fuga do rei e da comitiva real, a figura irônica e culta de La Bretonne diante de outro sofisticado da época, o literato e conquistador sexual italiano Giacaomo Casanova). Mas é no fim do primeiro capítulo de A descoberta austral que alguém nominado o Australiano começa os relatos fantásticos sobre o Homem-austral, o ser superior, o homem-voador que topou com os seres híbridos estranhos e inferiores de diversas ilhas ao sul do mundo. Victorin é a personagem central deste mundo esquisito e antecipador. Que quer o jovem Victorin? Tem o desejo secreto de voar; para isto, observa os pássaros, os insetos, todos os seres que voam. Tem também um projeto amoroso e genealógico: sequestra a pequena Christine e formar com ela uma república muito particular, de descendentes que virão a voar.

“C’est ainsi que le jeune Victorin charmait ses peines, durant quelques heures; mais elles n’en revenaient ensuite qu’avec plus de violence; car lorsqu’il était au milieu de son agréable chimère, son esprit s’éveillait tout-à-coup, & il se disait en pleurant: ‘Hélas! Tout cela n’est pas vrai-!’ Dans sa mélancolie profonde, il recherchait encore davantage la solitude, & on ne l’aurait jamais vu, si le désir qu’il avait lui-même de voir Christine ne l’eût forcé d’aller souvent au château.” (“É assim que o jovem Victorin aplacava suas penas, ao largo de algumas horas; mas elas tornavam logo com mais violência; pois quando ele estava no meio de sua agradável quimera, seu espírito despertava bruscamente, e ele exclamava chorando: ‘Opa! Tudo isto não é verdadeiro!’ Em sua melancolia profunda, ele procurava ainda mais a solidão, & não se teria jamais visto tal, se o desejo que ele tinha, ele mesmo, de ver Christine não o tivesse impelido a ir amiúde ao castelo.”)

Do amor de Victorin e Christine surgem as gerações de homens-voadores. E, percorrendo as ilhas selvagens, Victorin e sua família dão com homens-leões, homens-porcos, homens-cavalos, homens-macacos, homens-rãs. Misturas, sexo que mistura os tipos híbridos. E La Bretonne usa com mestria dos termos híbridos para caracterizar a miscelânea dos seres. Numa das fotografias desenhadas do volume, lemos: “Un Jeune-homme et une Fille-grenouilles à terre, et qui viennent de se quitter. Une autre Fille-grenouilles s’élançant dans l’eau, à l’approche des Hommes-volants. Des Amphibies de la même espèce nageant dans le lac.” (“Um Jovem-homem e uma Jovem-rã em terra, e que acabam de se deixar. Uma outra Jovem-rã se lança na água, à aproximação dos Homens-voadores. Anfíbios da mesma espécie nadando no lago.”)

No fim do livro, já anciãos, Victorin e Christine lançam o decreto do Rei e da Rainha à comunidade dos franco-cristinienses, comunidade a que pertence tanto a Ilha Christine quanto as outras ilhas (Ilha-macaco, ilha-urso, etc.) Concluindo em pequeno parágrafo, o autor retorna para dizer adeus e evitar a palavra que poderia descaracterizar o mistério essencial de seu relato. “Je n’en dirai pas davantage, honorable Lecteur: un mot de plus découvrirait ce qui doit rester caché à jamais, & ce mot se n’échappera de ma vie. J’ai seulement voulu mettre sous vos yeux un tableau neuf. J’ai déjà vu deux fois le Prince Hernantin. Adieu.” (“Eu não direi mais sobre isto, honorável Leitor: uma palavra a mais descobriria o que deve permanecer escondido para jamais, & esta palavra não me escapará em minha vida. Eu tenho somente querido pôr sob vossos olhos um quadro novo. Eu já vi duas vezes o Príncipe Hernantin. Adeus.”). Adeus, pois: a Deus, quiçá.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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