O Filme: Um Aquário no Continente Brasileiro

Kleber Mendonça Filho segue fazendo, em Aquarius, seu cinema de grande precisão formal e com uma atmosfera ensaística muito particular

02/09/2016 22:27 Por Eron Duarte Fagundes
O Filme: Um Aquário no Continente Brasileiro

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Há quem ache que um filme possa existir numa realidade à parte, entre parênteses da realidade. Por mais fantasioso ou escapista que seja, um filme vai, cedo ou tarde, apresentar suas conexões com a realidade do lado de fora (do set de filmagem ou da sala de cinema), pois é realizado por homens, que, bem ou mal, vivem no mundo real.

Aquarius (2016), o novo filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho, antes de ter seus méritos ou defeitos avaliados, teve uma inusitada aparição política no Palácio dos Festivais do último Festival de Cinema de Cannes. No dia em que a Câmara dos Deputados em Brasília votava pela abertura do processo de impedimento da Presidente da República, no belo balneário do sul da França, antes da exibição de seu filme, Kleber e sua equipe portaram cartazes contra o que eles definiram como golpe de Estado. Foi o que bastou para despertar a ira de alguns e o aplauso de outros, entre nós. Entre os irados, houve quem convocasse as pessoas a boicotar o filme, deixando de ir aos cinemas para vê-lo. Ingenuidade sobre a propaganda negativa: no lugar de funcionar como negação do produto, vem a funcionar como publicidade gratuita; o que de fato ocorre nestes casos, sabe-se depois de muitas décadas acompanhando as coisas, é que boa parte dos espectadores acaba indo ao cinema por curiosidade, quando em condições habituais não se interessariam por tal filme. Uma tolice este tipo de convocação: parece uma daquelas igrejas —medievais dentro do século XXI— que querem salvar o mundo expulsando da visão as obras de arte impuras, pecaminosas. Esta foi a situação inicial do filme Aquarius: sua visibilidade num famoso festival europeu de cinema diante dum momento político brasileiro raro e complicado, a destituição dum chefe de governo.

No entanto, para bem ver Aquarius, o espectador deve esquecer esta polêmica mercadológica. Pode situá-la, como fiz aqui; mas olvide-a durante a projeção. Isto não significa que Aquarius se aparte da realidade que estamos vivendo, realidade cujos embates sociais se estabelecem no próprio episódio do impedimento da Presidente; significa somente que o modo cinematográfico de Aquarius viver estes problemas brasileiros é bem outro, mais sutil e complexo que as dicotomias fáceis determinadas pelo olhar muitas vezes vesgo disseminados nos meios de comunicação e nas redes sociais.

Kleber segue fazendo, em Aquarius, seu cinema de grande precisão formal e com uma atmosfera ensaística muito particular. Em O som ao redor (2012) ele expunha à estranheza os habitantes duma rua pernambucana. Mas, apesar de alguns achados, a narrativa simulava um rascunho e se dissimulava numa experiência tortuosa que chegava perto mas não lá. A evolução mais palpável de seu cinema se dá mesmo em Aquarius; o olhar estranho e particular do cinema de Mendonça Filho desce numa planície cinematográfica escorreita. O realizador vai ainda em busca da concentração de cenário; em Aquarius o cenário-fundamento (ou o cenário-personagem) é um apartamento situado num prédio especulado por uma construtora, na praia da Boa Viagem, em Recife, Pernambuco. É verdade que a câmara se expande, vai para a praia, para os corredores do velho prédio, para a garagem, um pouco para lá, um pouco para cá, mas sempre torna àquele eixo central, o apartamento e sua moradora, uma jornalista aposentada que resiste às investidas financeiras da construtora em nome de preservar consigo a ambientação em que construiu sua própria vida. O antigo embate entre o velho e o novo é o que está aí nestas anotações fílmicas e também os aspectos dos embates entre as classes sociais brasileiras, o cinismo de quem tem dinheiro e as tentativas de dignidade de quem não o tem tanto. Assim, Aquarius (e o cinema de Kleber, pois) é realizado por um homem, como qualquer filme, e se incrusta em sua realidade: não surpreende que Kleber possa ter proposto aquela opção de denúncia de golpe de Estado no Palácio dos Festivais, em Cannes. O filme (ou o cinema como um todo): aquário no continente.

A cena de abertura de Aquarius se passa no fim dos anos 70, quando, no mesmo apartamento, Clara, a jornalista, reúne alguns amigos, depois de ter atravessado o tratamento para um câncer. Cerca de trinta anos depois, a narrativa de Aquarius segue os passos de Clara, aposentada e viúva, ora digladiando com um jovem construtor arrivista, ora enfrentando a incompreensão duma filha, ora pegando um rapaz de programa para ter sexo, lá se embeiçando levemente pelo bombeiro da praia. E nada melhor para expor esta reflexão seminostálgica do que trazer, para o espectador brasileiro, especialmente o que viveu nesta geração de que fala o filme, um ícone de nosso erotismo cinematográfico, a atriz Sônia Braga. E Sônia nos entrega uma interpretação de sedução e intensidade. Mesmo que ela já não tenha todos os encantos físicos (restam alguns, claro) que fizeram delirar os machos brasileiros em filmes como Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto, A dama do lotação (1978), de Neville d’Almeida, e Eu te amo (1981), de Arnaldo Jabor, ou em telenovelas como Gabriela (1975) e Dancin Days (1978). Aquela cena final em que a personagem de Sônia despeja cupins sobre a mesa dos construtores estarrecidos, dizendo que, depois que, havia 30 anos, tivera câncer de mama, resolvera não mais ter câncer mas dar um câncer é uma alça de mira do indivíduo brasileiro de hoje desprotegido diante das artimanhas do poder. Devemos ver o filme esquecendo a cena um pouco irreverente, um pouco mercadológica do Palácio dos Festivais em Cannes, aqueles cartazes políticos e uma plateia preparada para receber bem tudo isto. Mas, após a projeção, é bom voltar àquela cena, àqueles cartazes. Esta cena e estes cartazes se ligam umbilicalmente ao gesto bravo da personagem de Sônia Braga no fim de Aquarius. O filme entre parênteses da realidade não existe. Muito menos este de Kleber Mendonça Filho.

(Um comentário entre parênteses. Não da realidade. Um pouco apartado do filme de Kleber. Mas nem tanto. A estranheza brasileira que cruza o cinema do diretor pernambucano tem conexão com esta realidade que passo a expor. A realidade brasileira histórica: uma relação entre o pensamento dos indivíduos e as relações políticas no sentido histórico. Uma estranheza em processo constante. Glauber Rocha, cineasta pecaminoso e desbocado, uma devastação em imagens em seus filmes, andou dando as mãos, nos anos 70, a um ditador como Ernesto Geisel. Atualidade. Delfim Neto, economista influente ligado aos governos militares, reapareceu do ostracismo, em tempos recentes, para defender os governos do PT e especialmente o de Dilma Roussef. Bresser Pereira, economista conservador e assumidamente um cérebro da elite econômica brasileira (um homem rico a serviço dos ricos) denunciou o ódio de classe no Brasil no ódio ao PT; tive um episódio pessoal esclarecedor quando um médico que me atende me disse, no consultório, que não importa quem estivesse do outro lado, o que importava era tirar o PT do poder. Na contramão, lendo a coluna do jornalista Elio Gaspari, descobre-se que dois indivíduos que estiveram com Dilma na luta armada dos anos 60 no Brasil, estavam agora no Senado Federal articulando e votando pelo impedimento da Presidente; estes homens eram Aloysio Nunes Ferreira e José Anibal. Gaspari alude a uma “trapaça da história”. Seria o oportunismo de indivíduos hoje obscuros que, para chamarem a atenção, dizem ou fazem coisas diferentes do que sua biografia manda? Estariam na verdade visando ao contrário do que dizem ou fazem? Uma trapaça, na verdade, biográfica? Coisas assim revelam nossos problemas, nossas incoerências, nossas impossibilidades brasileiras. Glauber, que antes citei como inesperado amigo de um ditador na década de 70, fez o mais belo dos filmes brasileiros, Terra em transe, 1967, em torno destas explosões nacionais na contradição e na confusão. Glauber o fez à sua maneira, com um genialidade tão lúcida quanto demente. Kleber retoma tudo isto com as formas narrativas e as possibilidades históricas do momento atual).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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