A Marca Brasileira: A Escravidão Negra
Um dos pólos da análise do mito escravista brasileiro em Raízes do Conservadorismo Brasileiro é o desnudamento de um escravocrata que a história tratou de ocultar
Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil (2017), um luminoso ensaio escrito pela historiadora catarinense Beatriz Mamigonian, foi publicado quase simultaneamente com Raízes do conservadorismo brasileiro (2017), do escritor, jornalista e historiador gaúcho Juremir Machado da Silva. Se Juremir centrou suas reflexões no papel histórico da imprensa, e na forma como o imaginário escrito foi desenvolvendo nosso arraigado conservadorismo que veio ter nas formas midiáticas de hoje, Beatriz refere mais os cotidianos de senhores, escravos, edições de leis, decisões de tribunais que circularam, ao longo do século XIX, em torno da Lei de 1831 que proibia o tráfico de escravos (qualquer africano que desembarcasse em solo brasileiro era livre a partir da lei) e no entanto foi amplamente descumprida pela elite de senhores, que ainda nos dias atuais no Brasil insistem em interpretar a legislação à luz de seus interesses.
Quem leu primeiro o livro de Juremir e agora se debruça sobre o de Beatriz, vai topar pontos de contato, entre fatos e personagens históricas. Pode haver uma sensação de reiteração na alma leitora; porém surge, no instante mesmo desta sensação, anteparos diferentes, que revitalizam as leituras. Beatriz substituiu à energia panfletária de Juremir uma forma emocionalmente mais concisa de observar a genética do atraso brasileiro, e ambos, Beatriz e Juremir, se completam como iluminações históricas, próximas e todavia nunca espelhadas, para extasiar a quem pretende pensar sobre as idas e vindas da história da escravidão no Brasil.
Um dos pólos da análise do mito escravista brasileiro em Raízes do conservadorismo brasileiro é o desnudamento de um escravocrata que a história tratou de ocultar no conceito de romancista indianista, o escritor cearense José de Alencar, segundo Juremir foi “quem encarnou o pior da retórica conservadora brasileira do século XIX.” Beatriz, em Africanos livres, desnuda a questão assim: “A política do governo imperial em relação aos africanos emancipados entre 1834 e 1850 esteve intrinsecamente relacionada ao processo de organização do Estado nacional.” Isto significa que vozes como a de Alencar —em evidência, com visibilidade na corte— só existem porque são a suma de muitas vezes existentes na sociedade; e esta sociedade, a despeito de Lei de 1831, tardou em ver a hediondez do regime de escravos porque precisava do tráfico e da escravidão para manter seus privilégios, então se necessitava “organizar o Estado nacional” à maneira que isto fosse possível —ainda que contra a lei, que é sempre passível de interpretações, adequações ou teses jurídicas adequadas.
Furibundo, o jornalista Juremir conclui assim sua notável dissertação:
“O preconceito (mal) dissimulado tenta evitar esse acerto de contas. Um universalismo abstrato é usado como chicote contra os que falam de situações concretas. Mas é questão de tempo. Não há mais trégua para infâmia.
O ano esquecido, 1888, é um espectro que ronda.”
Beatriz, mais simbólica, mais agridoce que desesperadamente agressiva, vai descobrir, no fim de seu ensaio, uma árvore no interior do Nordeste brasileiro, em Nísia Floresta, cidadezinha a 30 km de Natal (onde este articulista também esteve em 2011 e fotografou a mesma árvore que a ensaísta fotografou para o livro), como símbolo rebelde da escravização ilegal (seria isto, escravo ilegal, um pleonasmo antropológico?) ocorrida ali próximo pela mesma época da plantação da árvore. Anota a escritora: “O caso dos africanos ilegalmente escravizados no Engenho Belém merece atenção especial (...) O baobá, que teria sido plantado à mesma época do processo, provavelmente guardava um significado especial para os africanos da região, opaco para o resto da população.” E fecha assim suas divagações, entre o real e o mito cênico: “Há quase um século e meio uma árvore, o baobá de Papary, desafia a história como um memorial das vítimas da escravização ilegal e um símbolo de suas lutas por direitos.” Nísia Floresta, antiga Papary, é um pequeno lugarejo no Rio Grande do Norte e seu atual nome se deve à filha mais ilustre daquelas lonjuras, a escritora pré-feminista Nísia Floresta que, avançada demais para o lugar e o tempo em que nasceu, acabou por morar na França, o berço cultural e econômico do século XIX. (Este comentarista visitou a cidadezinha há sete anos, ouviu de um taxista a história de Nísia e, no mesmo ano em que lá aportou, deu no livro Um escritor no fim do mundo (2011), de Juremir Machado da Silva, com uma referência enviesada à figura pouco conhecida de Nísia; Juremir inventa, numa palestra do francês Michel Houellebecq, uma pergunta do público: “O senhor sabia que Comte teve uma amante brasileira, uma nordestina chamada Nísia Floresta?” Nísia é, pois, uma criatura, que percorre uma viagem, uma leitura antropológica e uma leitura histriônica de quem aqui traça linhas.)
O espaço da historiografia da escravidão no Brasil cresce muito com o brilho reflexivo de livros como Raízes do conservadorismo brasileiro e Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil, cada um a seu modo mas com uma bússola de navegação que às vezes singra os mesmos mares.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br