Eu No Tenho Nada a Ver com Isso
O diretor Andrea Tonacci, diretor de Bang Bang, faleceu dia 16 de dezembro de 2016, aos 72 anos


Pré-escrito: O diretor Andrea Tonacci, cujo filme Bang bang é analisado abaixo, nasceu na Itália nos anos 40 mas mudou-se para São Paulo, no Brasil, com sua família, aos onze anos de idade. Seu nome esteve ligado ao ciclo marginal de cinema; não tão conhecido hoje em dia quanto Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, seus parceiros de aventura nos anos 60 e 70, Tonacci faleceu dia 16 de dezembro de 2016, aos 72 anos.
Uma frase significativa sobre o modo enviesado e misterioso com que o cinema se articula em Bang bang (1970), de Andrea Tonacci, é dita, de maneira debochada e suja, por Paulo César Pereio dentro dum elevador, lá pelo início do filme: “Eu não tenho nada a ver com isso.” Que quer dizer isso? Muitas coisas e nada. Quer dizer que Bang bang está se lixando para o que se passa em torno, para a situação do país na época, para as inquietações do cinema (comercial, via cinema americano, ou de autor, ao modo do Cinema Novo). Pode querer dizer também que pouco se lhe dá que o espectador o entenda ou dele desfrute; Tonacci poderia repetir o dito final duma voz que surge sobre a tela branca que encerra outro filme do ciclo marginal, Sagrada família (1970), de Sylvio Lanna: cobrem a entrada do autor —o que é uma autoironia, o autor de filmes assim não terá dinheiro. E pode ainda significar que Pereio se esteja travestindo de espectador de Bang bang: este espectador, aparvalhado, nada teria a ver com os disparates que se passam em cena.
Bang bang é um pouco um irmão de O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, mas age diferentemente no seio da linguagem. Ambos os filmes brasileiros bebem no diretor franco-suíço Jean-Luc Godard. Uma cena muito godardiana é o diálogo de Pereio com uma mulher num bar, repetindo e refazendo um cumprimento trivial como “oi” para ajeitar-se estilisticamente como mais convém, e aí é clara a sombra das discussões linguísticas do garçom num bar em Made in U.S.A. (1966), de Godard. Os planos longos, exasperantes, estáticos reconstroem esteticamente a discussão sobre este “oi” que não sai do lugar. Assim como as sequências de um carro andando (aparentemente uma ação cinematográfica, como num filme americano) induzem ao contrário do que indica seu conteúdo; o conteúdo é movimento e a imagem é algo que se repete sem avançar. Mostrar, em travelling, um carro andando sem outro significado que um carro andando é como dizer “oi” sem pensar nisto ou pensando em outra coisa; mas alongar o tempo de duração deste plano é fazer como Pereio faz à mesa de bar: repetir “oi” tantas vezes para discutir a melhor maneira de dizê-lo, é mostrar na trivialidade um mundo não descoberto.
Um texto que circule em torno de Bang bang deve fazer isto mesmo: andar em círculos, buscar o arrimo para estes círculos em pistas como a frase de Pereio dentro do elevador. Como o bandido de Sganzerla, os seres de Tonacci (Pereio centralizando-os) são grossos e sujos, se despem sem refinamento, se coçam agressivamente, cospem a comida no chão e falam de boca cheia. Maus modos, subcultura. A parábola final dos três bandidos é desorganizada e bruta; e não se completa; e é proferida entre resmungos de comidas do ator que a fala. Após a parábola, um quadro escuro cortado por duas listras brancas verticais preenche a imagem que antecede a palavra FIM. “Eu não tenho nada a ver com isso”.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publica苺es de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

relacionados
ltimas matrias




