Todas ao Palco
Divinas Divas chega às telas num momento oportuno, onde a discussão de gênero faz parte da pauta do dia não apenas na mídia, mas nas escolas
Existe um ritual para colocarmos a cara na rua. Até os atrasados passam por ele. E, é claro, existem os que acordam mais cedo para realizar a transformação com mais tranquilidade e dedicação. Só que a máscara que usamos todos os dias, necessária para assumirmos os papéis que a vida em sociedade cobra, também pode ter o seu lado libertador. Para quem nasceu num corpo de homem mas tem alma de estrela dos palcos, a máscara é a sua forma de mostrar ao mundo quem ele é de verdade. A atriz Leandra Leal, uma das mais talentosas de sua geração, diga-se de passagem, cresceu em meio a alguns dos maiores travestis do Brasil, já que o teatro de propriedade de seu avô, o Rival, no Rio de Janeiro, foi um espaço de grandes espetáculos de revista protagonizados por estes artistas. Agora, anos depois de observar tudo da coxia e brincar entre plumas e paetês, ela estreia como diretora num documentário que é uma declaração de amor a liberdade e a arte.
Divinas Divas chega às telas num momento oportuno, onde a discussão de gênero faz parte da pauta do dia não apenas na mídia, mas nas escolas. Apesar do conservadorismo de alguns grupos impedir que o assunto ganhe força, em especial nas escolas, nosso país já teve a sua era de ouro das travestis, tratadas como celebridades, com direito a carreira internacional. Rogéria, Jane Di Castro, Marquesa, Brigitte Búzios, Fujica de Holliday, Eloína e Divina Valéria são os símbolos de uma geração que encontrou nas boates cariocas a oportunidade de ser o que sempre quiseram. As divas do cinema e as musas do teatro de revista eram as inspirações, algumas vividas em segredos, como Marquesa, que chegou a ser internada pela mãe em um sanatório, ou com orgulho familiar, caso de Rogéria, que se intitula “a travesti da família brasileira”. Divinas Divas tem o olhar de Leandra sobre essas artistas. Na verdade, são Leandras, no plural, pois há um pouco das lembranças de infância da atriz e também a preocupação em dar uma visão abrangente sobre cada personagem, honrando seu cargo de diretora.
Logo na cena de abertura, onde a câmera permanece num super close-up em Divina Valéria, percebe-se que a ideia principal de Divinas Divas é mais poética que de registro. Óbvio que é importante deixar documentado a força destas artistas, mas Leandra, que também é roteirista do longa, junto com Carol Benjamin, Natara Ney e Lucas Paraízo, está também preocupada em devolver a elas suas auras de estrelas. Como tais, há a mais romântica e também a que é ousadia pura. Todas preparam-se para subirem juntas ao palco, num espetáculo em homenagem as grandes noites do Rival. Cenas dos ensaios são intercaladas com depoimentos repletos de lembranças, arrependimentos e muito amor. Amor pelo teatro, pelo público, por si mesmo. Divinas Divas é sobre ser quem se é, sem medo, apesar dos perigos que uma decisão como essa traz. Mas um artista é, antes de tudo, corajoso. Seja homem ou mulher, use vestido ou gravata. Gente é para brilhar, já diria um certo baiano.
Sobre o Colunista:
Bianca Zasso
Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.