O Nascimento do Urbano e a Montagem Descontnua
So Paulo S/A no deixa de ser um estudo sociolgico dum tempo do pas, feito com personagens que se estruturam em torno de algumas ideias deste estudo
Se os flashbacks se desestruturam morro abaixo em São Paulo S/A (1964), o primeiro filme dirigido pelo paulista Luís Sérgio Person e que se tornou o emblema duma época social e cinematográfica no Brasil, permitindo um frescor temporal na narrativa que os anos não conseguiram derrubar, é na descontinuidade espacial que Person avança para um ponto em que espaço e tempo se permutam criando uma composição fílmica autenticamente revolucionária, provocativa, intensamente jovem em suas formas. A câmara se agita muito em São Paulo S/A; e esta agitação perturbadora se alia com a montagem.
A sequência que abre o filme é exemplar deste processo criativo de Person. A câmara está do lado de fora duma grande vidraça duma janela dum apartamento de classe média. O espectador vê um casal jovem brigando. Não ouve os diálogos da briga. Pode observar os gestos ásperos. E nos ruídos da faixa sonora somente uma palavra, mais gritada, dita duas vezes, aparece como um sussurro: é Luciana chamando Carlos de covarde, covarde. No fim da cena, Carlos empurra Luciana, que cai no chão e parece rastejar para Carlos, que todavia se manda. A câmara sai desta tomada inicial fixa, deslocando-se para enquadrar a outra personagem central do filme, a cidade de São Paulo e a asfixia urbana, enquanto começam os créditos iniciais. Após os créditos, a sequência permuta os espaços e os diálogos. Carlos está na rua caminhando, Luciana está no apartamento abandonada; mas os diálogos agem como se Carlos e Luciana estivessem no mesmo espaço, no mesmo tempo, terçando as armas conjugais. “Por que embora Carlos, por quê?” “É inútil. É como se fosse um câncer. Nada adiantaria.”
Person não age com o radicalismo do francês Alain Resnais em O ano passado em Marienbad (1961), embora não se possa negar que qualquer filme que tenha proposto uma descontinuidade espacial-temporal dos anos 60 para cá possa ter por mote a obra-prima de Resnais; mas Person adota um outro tipo de fluência, namora um pouco o intelectualismo europeu, mas tem uma descontração brasileira com seus movimentos (de câmara ou de montagem).
Sabe-se que a base do roteiro de Person foi sua visão como indivíduo brasileiro do entusiasmo desenvolvimentista do país entre o fim da década de 50 e o começo da de 60; no início do filme, logo depois dos créditos, é escrito: “os episódios deste filme são fictícios e ocorrem entre os anos de 1957 a 1961.” A visão de Person sobre o desenvolvimentismo é crítica: ele acusa o lado estreito, falso, imediatista desta fase da sociedade brasileira e mostra os vácuos da classe média que financiou esta ilusão. São Paulo S/A não deixa de ser um estudo sociológico dum tempo do país, feito com personagens que se estruturam em torno de algumas ideias deste estudo. No entanto, Person tem a profundidade e a habilidade do cinema para não deixar que este estudo se esterilize como as criaturas que aborda.
Carlos é o jovem de classe média arrivista típico dos anos 60. Mas não é um simples tipo. Com o concurso da interpretação “esvaziadamente” sombria de Walmor Chagas, então estreando num papel cinematográfico, Person vai pouco a pouco tornando complexas as relações da personagem com o meio geográfico (a asfixiante metrópole paulistana) e o meio social (a classe média que emerge no centro industrial) em que vive. Carlos tem um casamento burguês com Luciana, interpretação também antológica de Eva Wilma. O filme ainda mostra excertos de relacionamentos de Carlos com outras duas mulheres: Hilda (interpretada com ecos de lata existencialista à Antonioni por Ana Esmeralda), que aparece quando ela se suicida, e o relacionamento dela com Carlos é revelado em fluidos flashbacks que se interrompem no espaço, os livros de Rilke e Rimbaud que vemos no cenário do suicídio se confundem com os passeios de Hilda e Carlos por uma galeria de arte onde vemos uma exposição de pinturas de Lasar Segall; e a outra mulher é Ana, uma composição doce e ingênua e malandra de Darlene Glória, mostrando as possibilidades duma mulher mais fácil e superficial nas mãos de Carlos. Entre a esposa que acaba por aborrecê-lo, a amante intelectual que nada entende da vida e é por esta derrotada e a garota faceira que vai trocá-lo por seu patrão, Carlos se exaspera com o vazio e no final rouba um carro e foge tanto de suas mulheres quanto da grande cidade que o despersonaliza esmagando. Há uma cena em que a câmara vê deliciada Darlene/Ana tomando uma ducha ao ar livre em primeiro plano. Numa outra cena Hilda/Ana Esmeralda é filmada contra uma parede branca e desanda no verbo: diz, entre outras estranhezas: “É uma coisa que se pode ler em determinados papéis, em certos documentos importantes: pessoal e intransferível...” No fim da cena, enquanto Carlos se afasta, Hilda repete diversas vezes, até tornar sua voz pouco audível: “Pessoal e intransferível...” São destes excertos que caracterizam situações e seres, engendrados numa montagem de rara felicidade, que Person extrai a melhor contribuição de São Paulo S/A para o cinema brasileiro.
As palavras finais de Carlos (“Recomeçar... mil vezes recomeçar... recomeçar de novo... recomeçar sempre... recomeçar... recomeçar...”) têm alguma coisa de um gesto desesperado e talvez fútil; estas exclamações reticentes de Carlos aparecem sobre as imagens difusas de transeuntes paulistanos; no plano anterior a imagem de Carlos começa a desaparecer pois sobre ela se imprime a imagem da cidade de São Paulo. O nascimento do urbanismo moderno brasileiro teve no tipo de montagem de São Paulo S/A um adequado correspondente estético; e teria a imagem de Carlos sumindo-se na cidade o valor simbólico da fuga/evasão do indivíduo na sociedade que o massifica cada vez mais?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br