As Exigências Estéticas de Zurlini
Cuido que as exigências estéticas do cineasta italiano Valério Zurlini chegam a seu mais elaborado grau em A primeira noite de tranquilidade (La prima notte di quiette; 1972)
Cuido que as exigências estéticas do cineasta italiano Valério Zurlini chegam a seu mais elaborado grau em A primeira noite de tranquilidade (La prima notte di quiette; 1972), que, tudo bem pesado, se oferece ao espectador como um autêntico tratado sobre a impossibilidade do amor e a inevitabilidade da presença da morte, temas que rondaram seus filmes mais referidos, como Verão Violento (1959), A moça com a valise (1960) ou Dois destinos (1962); em A primeira noite de tranquilidade Zurlini radicaliza estes questionamentos. Esta radicalização vem dos altiplanos estéticos atingidos por seu coeficiente de realização, e coeficiente é um termo que cai bem à narrativa de Zurlini porque tudo é sensivelmente matemático nas elaborações formais do realizador; antes de mais nada, a estética exigente de Zurlini nasce do extremado rigor formal, que produz achados plásticos assombrosos: desde o início, o filme se esmera em captar o universo íntimo duma cidade, a litorânea Rimini: o barco que chega, as ondas que se espatifam no cais, o homem solitário que dá informações aos turistas germânicos do barco; lá pelo meio do filme, uma cena-irmã repete um pouco destes gestos e clima, como um estribilho visual, o barco agora se afasta do cais, as ondas dão nas pedras do cais como antes, o homem vem novamente pela plataforma junto à praia com um cigarro na boca. As panorâmicas de Zurlini nestas cenas e em outras mais de A primeira noite de tranquilidade são arrebatadoras, são desconcertantes “versos cinematográficos.”
Ocorre ainda que a exigência estética de Zurlini está também em sua condição de europeu culto do cinema. As referências a outras artes, geralmente mais consideradas que o cinema, ainda e sempre visto e esnobado como um espetáculo de feira para a plebe, são semeadas em A primeira noite de tranquilidade com uma riqueza de detalhes e uma adequação narrativa que criam efeitos surpreendentes. Ao contrário da maioria das citações que o cinema faz a outras artes, aquelas de que usa Zurlini, especialmente nesta sua obra-prima, não se deslocam de seu eixo dramático para um exibicionismo pedante: tudo se encaixa com admirável precisão para que a sensibilidade do observador possa perceber a alma das personagens, que é no fim do caminho o alvo central de Zurlini.
Bem no comecinho, quando o professor madurão dá sua primeira aula e se acerca da garota entre casmurra e rebelde, surge um diálogo entre as personagens que é um dos pontos altos do poder de síntese de Zurlini, algo que talvez possa ser uma herança do cinema do italiano Roberto Rossellini. A adolescente, distante da tarefa que lhe dá o mestre, está lendo um livro; questionada sobre o que está lendo, volta o volume para o professor; a imagem em primeiro plano da capa do livro está desfocada, o espectador não logra ler o título, mas, ao perguntar “que outros livros de D.H. Lawrence você leu?”, o homem revela pelo menos o autor da obra. Seguindo-se, o homem refere o nome da garota e lembra que há um romance cujo título é o nome dela. Rispidamente, ela retruca: “Sim, Vanina Vanini. Existe até um filme antigo baseado neste livro.” Cenas adiante, o professor dá à sua aluna Vanina um exemplar do livro e aí a imagem mostra claramente o autor: Stendhal. Na primeira cena, na aula, os autores não informados identificam as referências ocultas feitas por Zurlini: o romancista francês Stendhal e o cineasta italiano Rossellini, que em 1961 rodou sua versão do romance de Stendhal. Na segunda cena, é muito rápido o plano que revela a autoria do romance: é quase como uma confirmação do conhecimento do espectador para este trabalho menos conhecido de Stendhal. Aliás, o filme de Rossellini é também pouco conhecido. Zurlini ajusta estas referências literárias e cinematográficas em planos-chave muito sutis para definir verdadeiramente o espírito de suas criaturas, este espírito nasce das distanciadas imagens da cidade de Rimini filtradas com a poesia da câmara de Zurlini e se completa nas alusões estéticas. Curiosamente, A primeira noite de tranquilidade não é tão stendhaliano quanto Verão violento; mas parece que Zurlini está sempre em busca destas relações entre o cinema e a literatura para reflexionar sobre os passos do homem na terra. Nas pequenas e despojadas frases duma adolescente em sala de aula Zurlini topa seu achado síntese: fala de Stendhal e de Rossellini sem citar nomes, como num jogo com a curiosidade intelectual do espectador.
Este jogo, todavia, não é somente literário ou fílmico. As inquietações diante da pintura se espalham por várias imagens de A primeira noite de tranquilidade, reforçando os aspectos de senso plástico do cinema de Zurlini desde sua concepção de filmagem, uma exasperação lenta que convida ao enlevo hipnótico. Os quadros abundam ao longo do filme. Um quadro no corredor do colégio; com este quadro cruza o olhar perplexo e indagador da personagem do professor. Quadro no apartamento onde os jovens alunos dão uma festa e na qual participa o professor. Quadro no quarto onde o professor vive com uma mulher. E, cena capital nestas relações pictóricas do filme, aquela em que o homem maduro e a adolescente contemplam Madona de Sinigalha, pintado pelo italiano Piero Della Francesca (1420-1492); o professor explica à sua aluna as perplexidades contidas naquela madona camponesa, cercada de dois anjos, e a câmara de Zurlini ora está na posição do espectador que contempla o filme e o quadro, ora está na posição do quadro que se volta para as personagens e para o espectador. Esta sutil ponte estabelecida nesta sequência entre a pintura e o cinema me evoca o que o também italiano Luchino Visconti fez em O leopardo (1963), quando o nobre vivido por Burt Lancaster se afasta do salão de baile para contemplar um quadro de Greuze, Morte do justo, que fala da morte e da dor da morte. Só cineastas grandes como Zurlini e Visconti sabem fazer isto com tanta profundidade.
Devo referir ainda duas sequências básicas de A primeira noite de tranqüilidade. Uma é a da festa; em Verão violento a festa jovem provoca a surda reação da madurona que está atraída por um jovem; em A primeira noite de tranquilidade tornamos a encontrar a cena da festa, jovens lúbricos dançando, o professor apaixonado observando, uma troca de olhares que se mistura com uma recusa de olhar (em certos momentos ela esconde os olhos no ombro de seu namorado para fugir à devastação visual do professor) que se converte numa autêntica partitura em harmonia e sugestões harmoniosas. A outra sequência é a que explica o título: o professor, seus amigos e uma garota brincam de ler o destino nas mãos, quando um destes amigos (ou um aluno) faz a pergunta derradeira: por que a morte é a primeira noite de tranquilidade? Pois bem: esta tranquilidade noturna o professor vai encontrar no fim: depois de se entregar a um choro perturbador dentro de seu carro (como aquele de Marlon Brando nas obscuridades visuais de O último tango em Paris, 1972, do italiano Bernardo Bertolucci), logo ao cruzar a avenida, um caminhão abalroa e joga para longe o pequeno veículo do protagonista, provocando o incêndio da máquina. A cena seguinte é a do velório: poucas vezes se filmou com tanta cara de velório um velório; e com a benfazeja síntese de sempre. A seqüência que encerra o filme é a chegada da personagem de Giancarlo Giannini ao cemitério e depois sua entrada na capela mortuária; a câmara fica do lado de fora quando ele entra; sobre a parte inicial desta sequência final (Giannini atravessando por entre os túmulos e a grama) ouvimos o texto do Evangelho onde se relata a ressurreição de Cristo. O ateísmo do filme e de seu protagonista passa por uma certa religiosidade.
Alain Delon, conhecido por emprestar sua figura de estrela a clássicos do cinema como O eclipse (1961), do italiano Michelangelo Antonioni, e O leopardo, o já aludido filme de Visconti, tem em A primeira noite de tranquilidade as possibilidades de exercer uma melancolia facial extremada. É “o seu” desempenho no cinema. A jovem Sonia Petrova, admiravelmente dirigida por Zurlini, é o complemento certo para Delon, que aparece em letras garrafais no letreiro como uma estrela que fosse capaz de dar credibilidade comercial ao mais exigente dos filmes do cineasta. Giannini e Renato Salvatori são outros nomes comuns no cinema italiano e europeu de então que é sempre bom rever.
Voltando ao início deste texto, cuido que A primeira noite de tranquilidade é acima de tudo uma jóia de estética. O conjunto de imagens, gravado na retina do espectador, forma o que se pode chamar um hibridismo de filme-livro-quadro.
P.S: Sabem aquela cena da negra quase que inteiramente despida dançando no palco de um clube noturno aonde a garotada e o professor vão distrair seu tédio? Pois nesta cena há ecos de uma sequência similar em A noite (1960), de Antonioni: em Antonioni estamos também num clube noturno, um dos muitos cenários de distração do tédio burguês por onde o casal em crise Giovanni e Lidia passa, e também há uma negra que selvagemente move seu corpo num pequeno palco.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br