O Cinema de Exigencias de Khouri
As Filhas do Fogo foi desacreditado ate pelos admiradores mais radicais do realizador
Certos filmes, vistos com desconfiança e descaso em sua época, crescem curiosamente na apreciação da posteridade. É o caso de As filhas do fogo (1978), de Walter Hugo Khouri. Todos sabemos que Khouri sempre dividiu os espectadores de seu cinema; não se toleravam muito suas preocupações espirituais dentro do cinema brasileiro, nem seu rigor formal era abraçado em sua plasticidade por boa parte dos observadores que acompanham o cinema nacional dos anos 60 aos 80. Mas em relação a As filhas do fogo alguns novos condimentos vinham em seu tempo apimentar a polêmica: primeiro, Khouri passou a ser visto pelo grande público, geralmente avesso tanto ao cinema um pouco secreto do cineasta quanto às instabilidades estilísticas de outros diretores brasileiros seus antípodas, como Glauber Rocha (Khouri talvez fosse, naquele final dos anos 70, a maior vítima dum fenômeno identificado, estranhamente, por um cineasta do Cinema Novo, Carlos Diegues, as patrulhas ideológicas no cinema; se Diegues começava a sentir os ataques dos patrulheiros naquele ocaso de década, Khouri sempre os sentira desde que começou a rodar filmes). O segundo tópico que punha pimenta nas discussões era o assunto de As filhas do fogo: a paranormalidade, que então se tornava moda no Brasil e no mundo; os céticos debochavam do que consideravam concessão comercial do artista puro encarnado antes por Khouri. A verdade é que, visto em Gramado e depois em sessões comerciais pelo país, As filhas do fogo foi desacreditado até pelos admiradores mais radicais do realizador.
Passadas agora algumas décadas, nota-se, de maneira geral, que As filhas do fogo tem algumas recepções críticas surpreendentemente entusiasmadas considerando-se o nicho original em que o projeto se formou na década de 70. Revisto tantos anos depois, As filhas do fogo revela ainda e sempre o apreço de Khouri pelas características secretas duma encenação cinematográfica, o que afasta suas realizações da estética de grandes plateias, mesmo que em determinados momentos possam arrebatar, por seu tema ou qualquer ingrediente, o habitual espectador de gênero. Uma facilidade crítica seria considerar que um tema da moda do fim dos anos 70, a paranormalidade e seu uso midiático de então, afete o rigor estilístico e metafísico de Khouri. Em As filhas do fogo a paranormalidade é um pretexto para que Khouri exercite seus preciosismos plásticos para criar, à maneira de As deusas (1972), uma atmosfera de poética cinematográfica; o assunto não existe, é só um ponto inicial de um “filme sobre nada”, como queria Gustave Flaubert escrever um romance sobre nada, um evento formal de muita sensibilidade e beleza, ainda que bastante mais superficial que o resultado que deparamos em As deusas.
O espectador pode apegar-se à trama e discorrer sobre a personagem de Ana que sai do centro urbano, desembarca no aeroporto, ruma para um local isolado onde a espera sua amiga Diana, com quem tem um caso de sexo, e ali depara com Dagmar, a senhora que grava vozes de mortos, e ressuscita no espaço mental de Diana e Ana as imagens (em retratos ou em planos silenciosos e estáticos como retratos) da mãe de Diana, Sílvia, com quem no passado Dagmar teve um caso de sexo que agora se reproduz entre Diana e Ana. Pode-se acrescentar o caso de sexo entre o mendigo bêbado forasteiro de Serafim Gonzalez (uma face masculina típica do universo de Khouri, Serafim faria depois para Khouri o diretor de cinema do fim de Eros, o deus do amor, 1981, novamente uma face masculina irônica, perversa, divagando em seu vazio) e a empregada negra Mariana (vivida por Maria Rosa). Mas esta trama só existe em sua complexa utilização formal, visando a um objeto de clima visual na cena. O que balança na cabeça do observador neste filme de Khouri é o gesto cinematográfico que Khouri reitera e depura de filme para filme.
A paranormalidade em As filhas do fogo se assemelha à função do ser masculino mudo (estranho; extraterrestre?) em Amor voraz (1984). Em As filhas do fogo é a personagem de Selma Egrei (uma atriz caracteristicamente khouriana em sua enviesada estranheza) que está muda o tempo todo. Selma conduziu outro filme de atmosfera de Khouri, O anjo da noite (1974), onde ela vivia uma preceptora de crianças numa noite de viagem dos pais; Selma equipara-se à Lilian Lemmertz como uma intérprete feminina adaptada ao universo de Khouri. Em relação a elas o tipo masculino (Serafim Gonzalez) faz uma composição adrede amorfa.
Em As filhas do fogo as duas atrizes que vivem as amigas Diana e Ana são estrangeiras; Paola Morra é italiana e Rosina Malbouisson é portuguesa, ambas foram dubladas por brasileiras, e Khouri dissolve este artifício nos outros atributos de sua encenação. O filme foi rodado basicamente em Gramado, aonde Khouri ia todo ano para o Festival de Cinema; diegeticamente na narrativa não consta a localização geográfica, o que se estabelece é que Ana sai do centro urbano para uma região isolada (campo ou serra) e aí as coisas começam a acontecer; há referências de colonização alemã, mas nenhum nome de cidade é aludido.
Da música de Rogério Duprat: o compositor valeu-se de trechos de “Fantasia em ré menor”, de Mozart. Duprat já se valera de Mozart em outro filme que musicou para Khouri: em As deusas pôs momentos mozartianos de “Canto da separação”.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br