Entre Paixoes e Sombras
Entre macacos e anjos adota, em seu conjunto, densidade e magia como previas esteticas
Elizeu Ewald faz, em Entre macacos e anjos (2019), uma narrativa cinematográfica da complexidade dos fragmentos. As cenas são estilhaços; mas nunca parecem propriamente isolar-se; há uma curiosa concepção de unidade na montagem de planos fragmentados de maneira aparentemente disparatadas. No começo do filme um diretor de cinema está numa consulta médica, especialmente para saber, após resultado de exame, se vai ficar cego. Ao sair no cotidiano das ruas, ele ouve uma jovem ao celular, desesperada, por um amor perdido, do outro da linha o amor perdido parece ser uma mulher, esta jovem que fala no telefone topa com um homem, conversam, há entre eles uma tensão amorosa desesperada, o cineasta de dentro do filme os segue, passa a compor seu roteiro, conversa no telefone com seu roteirista, as tensões cineasta-roteirista edificam parte da construção de Entre macacos e anjos. Elizeu ambienta seu filme entre paixões e sombras: a mulher que ama a outra mas ambas querem provar o amor uma à outra relacionando-se com um homem, é o roteiro pensado pelo diretor-personagem a partir dos fragmentos de cotidiano que ele observa; Max, o diretor de cinema à beira da cegueira, dialoga no telefone com sua atriz, os planos dele e dela se alternam na montagem, ela está na claridade de seu quarto, ele é visto num plano escuro, pouco distinguimos do que está no plano. Max terá de dirigir seu filme no escuro, ou às cegas? É uma situação trágica mas também cômica. Ou mesmo excêntrica: poderia valer-se de seu assistente para dizer-lhe as cenas que sua visão não vê. Sim: já houve quem fizesse isto, na Alemanha. Mas, nos créditos finais, Elizeu apõe lucidamente: “para os que vieram antes”.
Feito de muitas citações cinematográficas (no interior do escritório da produção, abundam cartazes de filmes, que talvez possam indicar algo das inquietações do próprio Elizeu para com os rumos de seu filme), estas citações algumas são evidenciadas, outras ocultas ou escavadas, tudo costurado com o grande prazer de filmar que emana muito do ato cinematográfico quase como um gesto lúbrico (sim, há belos planos de nus femininos em alguns quadros, mas não é só isto, é o gesto de filmar como um todo), Entre macacos e anjos adota, em seu conjunto, densidade e magia como prévias estéticas. Num determinado momento, um homem joga as cartas para a personagem do cineasta e define: “o futuro não existe.” Para a cegueira que vem, o que Max pode fazer é atacar o tempo que falta com o tempo presente, afinal o futuro é uma miragem ou uma cegueira.
Aqui neste texto, uni minhas próprias referências cinematográficas para meditar no filme de Elizeu; como adverte a dedicatória nos créditos finais de Entre macacos e anjos, o cinema não nasceu ontem, somos um processo em andamento. Somente procurei ocultar as evidências de minhas referências. Quem quiser, vá atrás.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br