A Epopeia Política de Bertolucci
1900 pertence a uma fase do cinema de Bertolucci onde o pensamento político do cineasta determinava celeremente sua estética
O sentido épico da narrativa do italiano Bernardo Bertolucci em 1900 (Novecento; 1976) se estrutura desde as imagens iniciais, pela grandiloquência da composição do quadro, pela maneira como se insere a música de Ennio Morricone, pela engenhosidade dos movimentos da fotografia e da câmara de Vittorio Storaro. Como ocorre em todo o cinema italiano, não se pode deixar de dizer que Bertolucci erige a herança do neorrealismo, na documentação histórica das atividades camponesas; mas o épico dramático que Bertolucci introduz em seu estilo de filmar, valendo-se de elementos filosóficos e psicanalíticos, afasta esta manifestação neorrealista dos excertos documentais utilizados em outras obras-primas italianas da época, como Pai patrão (1977), dos irmãos Taviani, e A árvore dos tamancos (1978), de Ermano Olmi.
1900 pertence a uma fase do cinema de Bertolucci onde o pensamento político do cineasta determinava celeremente sua estética. Os filmes mais recentes de Bertolucci perderam esta nervura. 1900 centra seu “sol narrativo” na questão marxista, a luta de classes, o conflito que na época se tinha por essência do capitalismo, as distâncias de interesses entre patrões e empregados. Mas o político em Bertolucci tem uma forte profundidade psicológica, como se soube antes, em O último tango em Paris (1972); o realizador, para expor suas ideias, põe em cena duas personagens que nasceram no mesmo dia em 1900, o patrão Alfredo Berlinghieri e o camponês Olmo Dalcò; ao longo do filme, desde a infância até a velhice final, os dois estão sempre próximos, amigos e se desentendendo, criando entre si uma atração tão espiritual quanto física, chegando ambos em determinado momento a estar na cama com a mesma mulher e um tendo de masturbar o outro, e Alfredo finalmente casando-se com Ada, mulher que atrai e é atraída por Olmo.
Se em O último tango em Paris Paul sodomiza Jeanne gritando insultos à família burguesa, numa cena de 1900 Olmo em criança ensina a seu parceiro burguês Alfredo como se fode a terra, assim como se transa com uma mulher. O aprendizado de Alfredo, o burguês, é duro. Ao conhecer Ada, imagina que ela é amante do tio Otávio; Ada está com o rosto misteriosamente coberto pelos cabelos lançados para a frente; numa crua e direta cena de sexo entre Alfredo e Ada, ele descobre que ela era virgem e de maneira alguma era amásia de Otávio, apesar das aparências. Alfredo e Ada, Olmo e Anita (esta morre de parto deixando uma filha de nome Anita). Os casais carregam suas alegorias. E mais que em todos, no casal Attila e Regina, sombrios, turvos, tortuosos, o alegórico se manifesta; é o alegórico fascista e suas cavernas.
1900 é o mais exagerado dos filmes de Bertolucci, mas é um exagero que topa seu profundo sentido. É ambicioso e utiliza todos os artifícios do cinema para seduzir o observador. Bertolucci não poupou esforços e caracterizou seu elenco internacionalmente. Robert de Niro, que foi o taxista neurótico do norte-americano Martin Scorsese e um chefão irônico para o também ítalo-americano Francis Ford Coppola, vive Alfredo. Gérard Depardieu, que depois faria um dos papéis centrais de Meu tio da América (1980), do francês Alain Resnais, é Olmo. Dominique Sanda, revelada pelo francês Robert Bresson em Uma mulher suave (1969), é Ada, a burguesa inquieta e consciente, com um desempenho tresloucado que se opõe à sua estreia bressoniana. Donald Sutherland, que foi o protagonista de Casanova de Fellini (1976) pela mesma época, é um Attila (rei dos hunos? rei do fascismo?) cheio de uma perversidade sarcástica ou mesmo insana, refazendo mesmo certas características gestuais de seu torturado Casanova felliniano. E Burt Lancaster, que foi um culto aristocrata em O leopardo (1963), do também italiano Luchino Visconti, está na pele dum decadente avô Berlinghieri.
Não se pode negar que as complexidades das relações sociais para onde derivaram nas décadas seguintes os caminhos do capitalismo, tornam a impetuosidade política de 1900 ainda mais estereotipada ou ingênua do que já era em sua época. Mas a grandeza cinematográfica de 1900 supera estes pequenos senões, fortemente datados, transformando este filme num evento básico do cinema dos anos 70.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br