A Eterna Marca da Pol?mica no Tango de Bertolucci
O Ultimo Tango em Paris articula com grande senso de cinema os vaivens temporais
Desde suas primeiras exibições na Europa, no começo dos anos 70, O último tango em Paris (The last tango in Paris; 1972), o mais comentado filme do italiano Bernardo Bertolucci, tem dividido as plateias de cinema: houve quem o considerasse ingênuo e imaturo em sua fusão de sexo e crítica moral à maneira do existencialismo, já naquelas primeiras distribuições do filme mundo afora; houve quem, decepcionado com sua promessa não cumprida dos nus fáceis e voluptuosos, o detestasse imediatamente; mas houve muita gente que, como a ensaísta americana Pauline Kael, viu na obra de Bertolucci uma saída notável para escapar ao “sexo mecanizado” dos “filmes sensacionalistas” e transformasse o aparecimento do sexo no cinema num caminho de “paixão e violência sexual”. Quando, no fim dos anos 70, favorecido pelo afrouxar de rédeas da tosca censura dos governos militares, a realização aportou nas telas brasileiras, uma multidão de espectadores correu para as salas de cinema, movida pela curiosidade sexual, longamente abafada pelos anos de repressão; como a proposta estética de Bertolucci ludibriava esta curiosidade, boa parte destes espectadores saiu insatisfeita, e ainda mais insatisfeita em face da lentidão narrativa e da metafísica de intelectual europeu adotadas pelo filme.
Ao longo das décadas foi possível rever várias vezes O último tango em Paris, desde aquele primeiro contato, no fim de 1979, no desaparecido e gigantesco cinema Cacique de Porto Alegre. À medida que os anos se foram afastando daquele 1972 em que se deu seu lançamento internacional, e as modificações de costumes pareciam indicar que certa moral familiar arcaica e algumas altercações ideológicas estavam enterradas, aquela noção de imaturidade do erotismo que se acercava, mesmo em sua época, duma visão do filme, sedimentava a sensação de que certas coisas poderiam ter envelhecido nO último tango em Paris. Ainda assim, a profundidade de Bertolucci como cineasta permitia a seu filme atingir o observador em todos os obscuramente paradoxais sentimentos, como tem acontecido desde a visão inicial desta obra-prima. Revendo-o há alguns anos, à beira do fim da segunda década do século XXI, O último tango em Paris, mantendo a força de suas cargas emocionais, apresenta uma conotação diferente da revisão do início dos anos 2000. O retorno nos últimos anos a uma moral próxima do clima medieval, restaurando aquele moralismo familiar de antanho, ressuscitando hipocrisias e trazendo do túmulo discussões ideológicas que estavam fora de moda, faz com que O último tango em Paris resgate sua natureza de provocação que teria perdido um pouco ao longo dos anos; talvez nos tempos de hoje ele tenha mais efeito provocativo que em 1972, pois é de se perguntar que acham de algumas cenas os reacionários de toda ordem que hoje nos cercam? Teriam uma reação violenta contra Bertolucci como jamais se teve? Discutiriam, como costumam fazer hoje em dia, se O último tango em Paris é arte ou um lixo?
Vamos a um exemplo prático. A famosa cena da manteiga como lubrificante anal. Marlon Brando manda Maria Schneider, recém-chegada ao apartamento, buscar a manteiga. (Observação: até ali, os protagonistas já haviam transado várias vezes ao longo da narrativa, tudo de forma consensual, com boas doses de atração e repulsão entre os dois). Depois ele a põe de bruços no chão, baixa-lhe as calças, passa-lhe a manteiga no ânus, sodomiza-a vomitando diatribes contra a família burguesa signo da repressão. É o famoso estupro anal que foi filmado (Maria Schneider o disse, Bertolucci o confirmou) sem o aviso à atriz; ela chegou ao set e tudo estava preparado para isto, então aquela jovem de 19 anos foi apanhada de surpresa, não soube recusar a cena, depois pelo resto da vida se sentiu humilhada, foi marcada um pouco pelo sucesso de escândalo do filme, outro tanto pela repercussão desta cena de sexo anal. De um lado, as feministas do século XXI bradaram contra um episódio passado há mais de quarenta anos; as mortes de Maria Schneider em 2011 e de Bernardo Bertolucci mais além serviram para aquecer estas vociferações. Que tinham razão, é bom que se diga: este é o lado machista do filme; mas sem este seu lado condenável o filme não existiria assim como é, com suas perturbações próprias que chegam à posteridade. De outro lado, sabendo-se mesmo que não se trata de estupro ou violência sexual mas de uma encenação da violência (cinema, como teatro, é uma representação da realidade e não a realidade em sua instância mesmo), ainda assim cabe adivinhar o que diriam os pudores hipócritas que agora retornam com toda a violência diante desta sequência, em que penetrar no traseiro duma garota burguesa é uma ode-diatribe contra a classe social e familiar que ela representa.
Mas O último tango em Paris é mais que todas as polêmicas que o marcaram. É um destemperado furor em torno da pulsação de viver. Seu ponto estético é um olhar sobre o desespero e o sombrio. As meias-luzes da fotografia de Vittorio Storaro e os sinuosos e encadeados movimentos de câmara que buscam as personagens dentro dum cenário são formas cinematográficas da própria mente tal como a vê o próprio Bertolucci em seu cinema. Desde uma das imagens iniciais, a juventude do corpo de Maria Schneider é confrontada com a velhice duma senhora que, num banheiro, repõe a dentadura na boca. Pouco depois esta juventude da atriz-personagem inunda a câmara de Bertolucci num plano-sequência de sexo em que primeiro Brando prensa Maria contra a parede, de pé, e em seguida ambos concluem o ato sexual no chão do apartamento. Tudo isto bem no começo do filme. A cena que ficou famosa, a da manteiga, vai dar-se uma hora depois do começo da projeção, muito adiante desta primeira e mais intensa relação carnal dos protagonistas.
Os encontros entre Paul e Jeanne no apartamento de Passy, em Paris (ele procurava um apartamento para instalar-se após o suicídio de sua esposa, ela buscava um imóvel em que pudesse viver com seu noivo após o casamento) são alternados com as vidas deles fora dali, Paul e o espólio do suicídio de sua esposa, Jeanne e seu tresloucado marido-cineasta que parece uma paródia dum formalista da nouvelle vague; O último tango em Paris articula com grande senso de cinema estes vaivéns temporais, nunca se descuidando da progressão de sua profundidade emocional.
Este sentido do profundo existencial no filme de Bertolucci nunca é perdido de vista. Voltado para provocar o espectador em sua passividade moral, Bertolucci pôs, além daquela da manteiga, algumas outras cenas que em determinados instantes ou ângulos, pareceram incautas: Brando excita o asco da garota ao simular comer um rato morto que toparam na cama quando se preparavam para fazer sexo; Brando pede à Maria que corte as unhas, e, assim que ela as corta, pede que ela enfie os dedos no traseiro dele. Com seu sentido de estética cinematográfica, Bertolucci insere estes excertos próximos do grotesco em sua fúria existencialista geral. Assim, no mesmo padrão daqueles rocambolescos movimentos de câmara que, debaixo dum viaduto parisiense, acompanham os delírios iniciais de Paul/Brando no filme, delírios sublinhados pela música altissonante de Gato Barbieri.
Falado em sua maior parte em francês (em inglês somente os diálogos entre Brando e Maria, que logo ao se conhecerem falavam francês), O último tango em Paris adota um olhar internacional e sua escolha da cidade de Paris para ambientar sua história não é por acaso: o desespero existencialista teria de dar-se ali. Circular em sua construção filosófico-narrativa, uma das imagens finais de Brando retorna ao viaduto do início. Paul ao conhecer Jeanne não queria que soubessem os nomes um do outro, e foi áspero com a garota quando ela ameaçou abrir-se demais e dar nomes; no fim, saídos do apartamento, ele tenta uma aproximação bastante burguesa com ela e, na cena final, Paul pergunta a Jeanne seu nome e há uma ação cinematográfica sarcástica de Bertolucci, pois é no instante em que Jeanne balbucia “Jeanne” que ela aperta o gatilho do revólver, matando seu parceiro: a linha entre os dois fora ultrapassada, dali não se podia mais seguir. Como em O império dos sentidos (1976), do japonês Nagisa Oshima, o jogo entre Eros e Tanatos é que comanda o espetáculo. Em ambos os filmes os machos, ainda que desfrutem o prazer ao longo da narrativa, é que levam a pior: no filme de Oshima a fêmea enforca indelevelmente o homem. É claro que Bertolucci tem um senso do trágico italiano que escapa ao ritmo quase matemático do oriental Oshima. Mas é curioso observar que estas conclusões de histórias de dois diretores-homens podem estar acenando para uma conciliação com o feminismo que no fundo não é aceita porque o coeficiente de machismo de toda a encenação não deixa de ser exacerbante. Como se vê, por todos os lados, a polêmica. Mas que é um filme de tensões emocionais únicas, lá isto O último tango em Paris é.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br