O Desejo Sexual e a Parania Poltica

Entre o desejo sexual (obscurecido pela moral) e a paranoia poltica (maculada pelo proselitismo), Bertolucci edificou seu cinema

05/12/2018 15:18 Por Eron Duarte Fagundes
O Desejo Sexual e a Paranóia Política

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Bernardo Bertolucci faleceu em 26 de novembro de 2018, aos 77 anos, é um dos grandes cineastas italianos duma geração peninsular cheia de grandes nomes do cinema: Luchino Visconti,  Federico Fellini, Valério Zurlini,  Michelangelo Antonioni, Paolo e Vittorio Taviani, Pier Paolo Pasolini atravessaram os mesmos salões de Bertolucci. Entre as obras-primas do realizador, se apontam: O último tango em Paris (1972), 1900 (1976), La Luna (1979), O último imperador (1987). Nas meditações que seguem o comentarista se debruça sobre dois filmes do realizador feitos no começo da década de 70 e que foram uma espécie de virada em sua forma cinematográfica.

Nos tempos em que estabeleceu suas orientações estéticas como diretor de cinema (os anos 60 e 70), o italiano Bernardo Bertolucci cruzava com provocação e muita criatividade dois elementos do comportamento humano: o desejo sexual e a paranóia política. De uma certa maneira, isto vem rebocando seu estilo de filmar até seus trabalhos mais recentes. Mas alguma coisa se foi alterando ao longo dos anos, pouco a pouco, e um pouco aqui um pouco ali a provocação desta combinação se atenuou pela abdicação de algumas características ontológicas do método. É o que se depreende ao rever O conformista (Il conformista; 1970), onde certas obsessões eróticas do cineasta aguçam e perturbam a inquietação política por seu “texto cinematográfico”.

Eram bem estes dois elementos, o sexo e a política, que serviam de mola para as transgressões da geração de Bertolucci. Com um agudo senso de poesia cinematográfica, articulando cores, movimentos de câmara, inserções musicais, simbolismos de cenas, perversidade de interpretações, Bertolucci acabou transformando-se no mais famoso entre os bem-sucedidos diretores que procederam a esta fusão que buscava atingir o cerne do bom burguês, da vidinha familiar medíocre, das condutas conformistas, ou seja, tudo aquilo que permitiu a entrada no cenário internacional de regimes repressivos, como o franquismo espanhol, o fascismo italiano e o nazismo alemão.

O conformista, cujo roteiro foi extraído dum livro do italiano Alberto Moravia, se passa em 1938. Na iminência da soberba fascista. Um intelectual italiano afeiçoado ao fascismo viaja a Paris, com sua recente esposa, para espionar um seu ex-professor de filosofia e vem a entregá-lo aos fascistas para execução. Mas Bertolucci não faz uma fábula política direta: as alegorias das encenações empurram a narrativa para uma subjetividade labiríntica, difusa; é bem verdade que, como afirmou o próprio Bertolucci, depois do caos (godardiano?) de Partner (1968), O conformista parece um caos ordenado; se O conformista está mais claro que as teias disformes de A estratégia da aranha (1969), pode-se observar que faltava ainda muito para que Bertolucci atingisse a translucidez e a profundidade metafísicas de O último tango em Paris, este sim seu filme básico. O conformista, com seus jogos cruzados de relações humanas, sua estudada estética, os movimentos sinuosos e obscuros da câmara, a sequência de danças populares, a evocação erótica na infância, é um ensaio para a encenação definitiva que foi O último tango em Paris.

Ver ou rever hoje O conformista pode em algum momento identificar o que há de datado neste filme de Bertolucci. O próprio ato de ver o filme se reveste de um certo anacronismo do pensamento do espectador, a recuperação de conceitos que talvez já não tenham sentido hoje em dia. Mesmo assim, somos atraídos por uma hipnose de filmar bertolucciana que tem muito de Freud ou do argentino Jorge Luís Borges, e que naquela cena da câmara instável que se movimenta entre as árvores, seguindo os passos dos fascistas que atiram na mulher do professor, atinge um dos êxtases estéticos do cinema de Bertolucci: há muito de perfurações sexuais indecorosas nesta violência fascista.

Intérpretes. Jean-Louis Trintignant, sim, Stefania Sandrelli, sim. Mas é bom observar a francesa Dominique Sanda em seu segundo trabalho no cinema. O francês Robert Bresson a lançou em Uma mulher suave (1969), uma intérprete não-profissional, bressonianamente crua, virgem dos vícios do celuloide, um dos “modelos interpretativos” de Bresson para a volta ao cinematógrafo. Bertolucci começou a transformá-la numa estrela: ela ainda está desajeitada, sem viço ou desenvoltura, mas se alterou bastante de Bresson para Bertolucci.

Sinuoso e perverso nos enviesados e escuros movimentos de câmara, O último tango em Paris apresenta o mais feroz choro cinematográfico, um primeiro plano de Brando junto à parede do apartamento vazio. E uma rápida e aguda sequência de sexo que marcou a história do cinema. Ela ocorre nas meias-luzes  do apartamento, quando a personagem de Marlon Brando possui a criatura de Maria Schneider prensando-a contra a parede e em seguida no assoalho, sem que ambos se dispam inteiramente.

Evitando qualquer ligação mais íntima fora da relação carnal (ele não quer saber-lhe o nome nem nada de sua vida fora daquelas quatro paredes), a personagem de Brando busca no momento final um gesto de aproximação, perguntando-lhe finalmente o nome que no início da narrativa lhe repugnava conhecer; ironicamente, é bem no instante em que ela balbucia “Jeanne”, que a garota vai apertar o gatilho do revólver, matando seu parceiro. Ao longo da narrativa de Bertolucci, os dois amantes trocam muitas confidências, há um longuíssimo primeiro plano de Brando deitado de lado no chão da peça falando interminavelmente; o suicídio de sua mulher, que tinha um amante, e a vida de noiva da garota (ela é noiva dum tresloucado cineasta vivido por Jean Pierre Léaud, ator-fetiche de François Truffaut) se misturam com os encontros e os desencontros do quarentão e da jovem no apartamento sem nada que eles preenchem com a voracidade de suas personalidades. O filme vaga então entre as vidas dos dois protagonistas fora da relação entre eles e a vida que criam em comum no apartamento de Passy, em Paris, em busca do qual ambos tinham  começado suas histórias dentro do filme.

O último tango em Paris tem algumas cenas que se tornaram permanentes na memória cinematográfica. A mais famosa delas é aquela em que se encena uma sodomia. Paul, valendo-se da manteiga como lubrificante sexual, sodomiza Jeanne sem a aquiescência dela: de todas as relações sexuais encenadas no filme, esta é a única não consentida por uma das personagens, o único estupro, um estupro anal. A provocação moral deste estupro é acrescida das vociferações de Brando contra a família burguesa. Com as declarações de Maria Schneider alguns anos antes de morrer, em que informou que a cena lhe fora imposta (lembrando: Maria, ainda que fosse uma atriz e tivesse costumes mais abertos, contava então com 19 anos, uma garotinha) e que aquilo lhe despertou nos anos seguintes muita raiva de Bertolucci e Brando, afetando toda a carreira dela e seus traumas vida em diante, a polêmica, que marcou todas as exibições do clássico de Bertolucci desde quando foi lançado na Europa no começo dos anos 70, voltou. O último tango em Paris está para sempre marcado pelos que o detestam ou relegam a um lugar comum no cinema e aqueles que, como este comentarista, se abalança sempre a obscuras e profundas emoções a cada revisão desta obra-prima.

Mas há outras cenas que passaram facilmente à história: Maria corta as unhas para, a pedido de Brando, enfiar seus dedos no ânus do parceiro. A penúltima sequência em que num salão de bailes o organizado concurso de tangos é interrompido pelo frenesi bêbado de Paul e Jeanne. Brando excitando o nojo de Maria quando, ao toparem  com um rato morto antes de transarem, ele simula comer o bicho defunto. Há cenas menos lembradas mas fundamentais no filme: o noivo de Jeanne lança ao Sena um salva-vidas em que vai inscrito o nome “l’atalante”, que é o título dum filme de Jean Vigo de 1934.

Entre o desejo sexual (obscurecido pela moral) e a paranoia política (maculada pelo proselitismo), Bertolucci edificou seu cinema, e seus filmes, nestes tempos de agora em que há uma espécie de retorno a uma moral arcaica e a discussões ideológicas que pareciam soterradas, talvez já não pareçam tão ingênuos ou envelhecidos como em alguns momentos do século XXI chegamos a pensar. Afinal, como observava o naturalista inglês Charles Darwin, a tendência do ser é retornar ao estado primitivo, ainda que circunstancialmente: a evolução exterior não mexe na essência da espécie.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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