A Contemporaneidade de Furtado

Rasga coração, o filme de Furtado, é também um pouco desta geração de sobreviventes e perplexos que, vindos dos anos 70, chegam a este 2018 brasileiro

15/03/2019 00:00 Por Eron Duarte Fagundes
A Contemporaneidade de Furtado

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Jorge Furtado, um dos diretores brasileiros atuais que de maneira mais adequada e com senso de cinema sabem equilibrar estas complicadas relações entre a comunicação com o público e o rigor estético, parece ter conquistado até mesmo alguns espectadores que repugnavam seu cinema. Rasga coração (2018) é este ponto de encontro. Não é por acaso: a maturidade de sua “conversa em imagens” com a plateia atual atinge uma forte inteireza; no entanto, ele nunca perde a visão crítica de seu trabalho em imagens, algo que o cineasta depura desde os tempos de Ilha das flores (1989), o curta-metragem cujo impacto emocional e artístico marcou, numa determinada noite, o último Festival de Cinema de Gramado  da década de 80. Em vários sentidos ou sensações, Rasga coração pode ser o mais bem acabado filme longo do realizador de Houve uma vez dois verões (2002) e O mercado de notícias (2014).

A origem da narrativa de Furtado é uma peça de Oduvaldo Vianna Filho, codinome Vianinha, escrita em 1974 e cuja estrutura política e experimental poderia apresentar certas dificuldades para o público da segunda década do século XXI. Furtado, um olho cinematográfico como poucos, adaptou ao contemporâneo os liames estéticos de Vianinha, mas sem perder as linhas essenciais, as navegações temporais, sociais e políticas, do texto do dramaturgo nos anos 70 são transpostas com uma claridade quase inesperada para as conexões familiares entre as revoltas jovens nos anos da ditadura militar e aquelas que se esboçam aqui neste terceiro milênio como um novo-velho roteiro das altercações entre gerações. Furtado limpa o texto de Vianinha de suas dificuldades semióticas para o público de um filme como Rasga coração, mas nunca desdenhando aquilo que também interessa ao diretor, uma posição crítica diante da vida e da linguagem. Sabemos todos que Ilha das flores, avançadíssimo, já era assim: uma tradução dos conceitos intelectuais para signos acessíveis.

Furtado faz sua montagem cinematográfica do drama de Vianinha, muitas situações e palavras ficam e outras vão embora, ligando ou desligando peça e filme, mas a essência, ou a alma, é preservada. Esta alma da obra, que teve sua extensão-peça e agora tem sua extensão-filme, é definida pelo próprio dramaturgo no prefácio de seu texto: “Rasga coração é a história de Maguari Pistolão, lutador anônimo, que depois de quarenta anos de luta por aquilo que ele acha novo, revolucionário, vê o filho acusá-lo de conservadorismo, antiguidade, anacronismo.” E é isto: no começo do filme Custódio Manhães (Marco Ricca), cujo apelido é Maguari Pistolão, está casado com Nena (Drica Moraes), e então a narrativa vai ao passado da luta do indivíduo contra o sistema e volta ao presente deste indivíduo como funcionário público casado às voltas com os questionamentos dum filho adolescente, para refletir sobre o eterno-retorno e as diferenças entre o fato passado e este retorno; neste vaivém a linguagem cinematográfica se torna agudamente política, como, sabemos, foi sempre o objetivo de Furtado, sendo a possibilidade de comunicação um meio.

Filmando uma história carioca, o gaúcho Jorge Furtado acresce ao texto de Vianinha uma cena final após a partida do filho adolescente de Maguari, uma partida para o mundo: Marco Ricca e Drica Moraes, serenos e maduros em seu dueto interpretativo, olham Copacabana pela janela e fazem observações soltas, cotidianas sobre o que está à volta, lá embaixo na rua. Uma doce melancolia bem ao gosto de amargura controlada do cineasta de Real beleza (2015), mas com um instinto de investigação cujo germe é o mesmo de Quem é Primavera das Neves? (2017).

Rasga coração, o filme de Furtado, é também um pouco desta geração de sobreviventes e perplexos que, vindos dos anos 70, chegam a este 2018 brasileiro. A geração deste comentarista, a geração de Furtado. Que um dia estiveram nas plateias de debates dos Festivais de Cinema Brasileiro de Gramado nos anos 80. O que pode determinado um pouco o tipo de narrativa cinematográfica e este tipo de visão exposto neste texto.

(Quem foi Oduvaldo Vianna Filho, o sujeito que escreveu o texto que inspirou o filme de Furtado? Foi um autor teatral brasileiro dos difíceis anos de chumbo, década de 70. Nasceu em 1936 e faleceu em 1974, aos 38 anos de idade, pouco depois de concluir sua peça Rasga coração. Câncer de pulmão foi o que o levou tão cedo: talvez se possa arriscar que os sofrimentos e a morte da personagem Bundinha, amigo do protagonista, tuberculoso, tenham aquela veracidade de autorretrato. Vianinha, como lhe chamavam, também chegou a atuar como ator no cinema. O filme mais notável em que ele participou foi Um homem sem importância (1971), de Alberto Salvá, onde ele era um protagonista urbano muito sombrio; infelizmente o belo filme de Salvá não é hoje muito referido pelos historiadores.)

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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