A Contemporaneidade da Renascença

A curiosidade histórica do romancista francês Jean-Christophe Rufin tem muitas saliências em Rouge Brésil

26/11/2014 10:05 Por Eron Duarte Fagundes
A Contemporaneidade da Renascença

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A curiosidade histórica do romancista francês Jean-Christophe Rufin tem muitas saliências em Rouge Brésil (2001). Rufin é médico, e é mais um médico mordido pela paixão de escrever. A curiosidade pela História que habita o indivíduo Rufin é revelada em algumas pistas que, num pós-escrito ou pós-romance, o autor dá sobre as origens de seu livro. Conta Rufin: “A primeira vez  em que tive a ideia deste livro foi quando eu vivia no Brasil lá vão dez anos, e mais precisamente no dia em que eu visitava no Rio um pequeno museu do centro da cidade chamado Paço Real.” (NOTA 1). Viajando, Rufin era um viajante atraído pela história do local onde se encontrava; mais ainda quando esta história se relacionava com o próprio país do viajante. Rouge Brésil é, assim, uma aventura brasileira e francesa, um francês que curtiu o Brasil, e anos depois, já de volta à França, recapitula, em romance, uma parte da história brasileira que é também uma parte da história francesa —eis um olhar renascentista europeu para as cavernas tribais brasileiras. Como assevera o próprio escritor, “nesta história marcada pela política, a aventura, a teologia, povoada de guerreiros, de fanáticos, de traficantes, eu perderei a esperança de jamais descobrir o tremor dum  afeto e a guardava, esta história, por muito tempo comigo.” (NOTA 2).

Quando, pois, estourou a história das maravilhas para que Rufin puxasse da pena? A fascinante paisagem brasileira em que ele vivia (ah, a baía de Guanabara, os morros e as enseadas cariocas...) e a visita ao Paço Real foram impulsos fortes. Faltava uma materialização final, o ato de composição. Um gesto narrativo, que é quando o escritor passa a existir para além do indivíduo que contempla. Deu-se este gesto a partir do momento em que Rufin, reabrindo um relato da expedição francesa do século XVI ao Brasil por Jean de Léry, uma das testemunhas da hora, topou com duas linhas onde o narrador-aventureiro aludia à presença de seis jovens que estavam ali para aprender a língua dos selvagens. Os seis rapazes anônimos, perdidos no fundo da história, referidos por um velho cronista forneceram o ponto-de-vista narrativo para a fábula renascentista de Rufin: “Just et Colombe nasceram e com eles Rouge Brésil.” (NOTA3).

Assim, Rufin, com grande habilidade, encena em palavras histórias e cenários onde personagens históricas, como Nicolas Durand de Villegagnon, a índia Paraguaçu e o governador-geral Mem de Sá (os franceses escrevem Sà, acento grave) vão contracenar com criaturas que saíram da cabeça do ficcionista, como os protagonistas, os irmãos Just e Colombe que eram crianças quando, iludidos pela promessa de encontrar o pai quase desconhecido no Novo Mundo, acabaram sendo embarcados à força na expedição francesa. Os motivos deste embarque forçado: para que aprendessem a língua dos nativos, facilitando assim a vida francesa em terras tropicais. Na história do drama das duas crianças que conduzem a narrativa de Rouge Brésil em seus encontros, desencontros e perplexidades, Rufin enxerga mais além, uma metáfora: “que é então este grande drama que resume sempre a infância, senão um embarque forçado na direção dum mundo assustador cuja língua se é obrigado a aprender?” (NOTA 4).

Rufin escreve um pouco com suas lembranças brasileiras, pescando com o olhar os mares e as matas que ainda se podiam ver em pleno século XX, outro tanto com evocações oriundas de imaginação e pesquisa. Um romance histórico de aventura. Que privilegia a aventura da palavra. Rufin é um pouco um rebuscado da linguagem. Usa amiúde um tempo verbal exclusivamente literário, o passado anterior, que é um tempo inexistente em português e que no francês coloquial está substituído pelo passado mais-que-perfeito. “Le cordelier regardait Colombe comme si ele eût été un serpent venimeux.” (“eût été”, passado anterior do verbo être”, “o franciscano olhava para Colombe como se ela fora uma serpente venenosa”). Variando constantemente os verbos discendi (aqueles que no discurso direto indicam os diálogos), Rufin foge à rotina e alterna as atmosferas narrativas. Alguns dos verbos que usa para apontar as falas: s’écrier (exclamar), hurler (berrar), gronder (ameaçar com o tom de voz), beugler (sinônimo de “hurler”, berrar), reprendre (tornar, recomeçar, no caso duma fala ou discurso), dire (dizer), crier (gritar), répondre (responder), ordonner (ordenar), trancher (cortar ou interromper alguém que está falando), demander (pedir ou perguntar), préciser (tornar preciso, determinar), grogner (grunhir ou urrar ou qualquer verbo que lembre os sons dos animais, no caso francês seria mais algo para um urso).

A diversidade vocabular e sintática de Rufin, feita com alguma facilidade de intenções, poderia evocar ao leitor de língua portuguesa a prosa de Eça de Queiroz. Aí, enfim, um sobressalto para um brasileiro que lê em francês, vasculhando uma intimidade duma língua na qual não foi criado desde as entranhas. Augusto Meyer, crítico e poeta gaúcho de primeira água, falando de Eça, lembrou o embalo do leitor na frase gostosa ou na imagem redonda que nos ilude. Incompreensão para com as sutilezas mais afrouxadas de Eça, ainda que o requinte de imagens sobreviva? Rouge Brésil está cheio destas imagens rutilantes que fascinam e também incomodam pelas facilidades ou ligeirezas sintáticas. No entanto, é um caso soberbo da sofisticação ou da própria soberbia francesa, para andarmos no mesmo compasso verbal do livro.

“—Monsenhor, todos sabem que o menino tem o dom das línguas. Ponha um adulto cativo em terra estrangeira, ele precisará de dez anos para familiarizar-se com as palavras. Um menino, em questão de semanas, saberá falar correntemente e sem pôr sotaque em sua fala.” (NOTA 5).

A França dos trópicos, idealizada por Villegagnon, começaria pelas crianças, que é como qualquer civilização começa. O melhor aprendizado está ali, diz alguém no romance, e o diz de maneira muito didática. Esta exuberância —um tropicalismo infantil— contagia o processo narrativo de Rufin. Que traz visões assim, misturando o escritor que viveu no Brasil e o pesquisador histórico: “Nesta parte da costa, a praia era estreita. Eles estavam imediatamente sob a cobertura espessa da floresta com suas múltiplas camadas de árvores. A sombra densa conservava nesta vegetação rasteira uma frescura inesperada. Não foram mais que cem que apareceram, numa clareira das grandes árvores, uma comprida casa de palmeiras na frente da qual corriam garotos nus.” (NOTA 6).

De toda maneira, mesmo que aqui e ali se valha de processos linguísticos que possam abeirar-se do desusado e do arcaico, Rouge Brésil exclama a contemporaneidade da Renascença, aqui e além-mar.

 

NOTA 1: “J’ai eu pour la primière fois l’idée de ce livre lorsque je vivais au Brésil voici dix ans, et plus précisement le jour où je visitais à Rio un petit musée du centre-ville appelé le Paço Real.”

NOTA 2: “Dans cette histoire marquée par la politique, l’aventure, la théologie, peuplée de guerriers, de fanatiques, je désesperai de découvrir jamais le frissonnement d’un  affect et je la gardai longtemps par-devers moi”.

NOTA 3: “Just et Colombe étaient nés et avec eux Rouge Brésil.”

NOTA 4: “qu’est-ce donc que ce grand drame qui clôt toujours l’enfance, sinon un embarquement forcé vers un effrayant dont on est sommé d’apprendre la langue?”

NOTA 5: “—Monseigneur, chacun sait que l’enfant a le don des langues. Mettez un adulte captive en terre étrangère, il lui faudra dix ans pour avoir l’usage  de quelques mots familiers. Un enfant, en autant de semaines, saura parler couramment et sans y mettre d’accent.”

NOTA 7: “En cette partie de la côte, la plage était étroite. Ils furent tout de suíte sous le couvert épais de la forêt avec ses multiples étages d’arbres. L’ombre dense conservait à ce sous-bois une fraîcheur inattendue. Ils n’eurent pas fait cent qu’apparut, dans une trouée des plus grands arbres, une longue maison de palmes devant laquelle courraient des enfants nus.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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