O Sobrenatural e o Espiritual na Contemporaneidade

Vincent Petitet, em seu romance O mortos nao estao mais sos usa o sobrenatural, meio espiritualizado, com muita transparencia dentro do cotidiano contemporaneo do seculo XXI

27/11/2020 14:05 Por Eron Duarte Fagundes
O Sobrenatural e o Espiritual na Contemporaneidade

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Vincent Petitet, em seu romance O mortos não estão mais sós (Les morts ne sont plus seuls; 2019), editado em Porto Alegre pela Sulina, usa o sobrenatural, meio espiritualizado, com muita transparência dentro do cotidiano contemporâneo do século XXI. O crítico francês Leo Vitry, em seu ensaio Vincent Petitet: um itinerário iniciático (Vincent Petitet: un itineraire initiatique), já chamara a atenção para este “l’universe surnaturel et profondément spirituel créé par Vincent Petitet” (“o universo sobrenatural e profundamente espiritual criado por Vincent Petitet”). Mas não se trata dum sobrenatural simplório, falso; nem de um espiritual desgarrado de suas situações concretas; Petitet não rebusca o que narra em cavernas deslocadas de sua autêntica visão literária, tudo se encaixa na realidade íntima e social do autor e de suas personagens nos tempos em que vivem, o despertar do terceiro milênio cristão sobre a terra.

Petitet nasceu em Besançon, em 1972; Besançon é uma comuna francesa citada por Stendhal em O vermelho e o negro (1830) como berço de alguns eclesiásticos inventados neste romance clássico. Antes de Os mortos não estão mais sós, Petitet escreveu Les nettoyeurs (2006). É, pois, ainda um autor de poucos livros.

Os mortos não estão mais sós é construído com grande rigor formal; mas este rigor, ou cálculo narrativo, não impede a capacidade de invenção do ficcionista, graças ao senso poético (fluido) que emana de suas frases. Uma de suas referências parece ser Arthur Rimbaud; em certa altura se parafraseia o verso de abertura do poema Voyelles (1883), uma inventividade do cotidiano armada por Rimbaud e que é em boa parte ponto de partida para aquilo que se estrutura ao longo de Os mortos não estão mais sós: como inventar o cotidiano que parece reiterar-se, como fazer esta invenção sem mistificar. Rimbaud é um bom caminho: Petitet reorganiza, na contemporaneidade, este caminho da cor das vogais. Outra chave dos postulados estéticos do romance está em outra citação, os quadros tortuosos do pintor holandês Hieronymus Bosch, “como essas figuras imundas dos trípticos de Hieronymus Bosch, como esses rostos distorcidos que, no calvário de Cristo, indicam sua maldade por espasmos, faces simiescas e contorções da boca.”

Para apresentar, literariamente, uma certa essência do signo da vida de hoje, Petitet traz para o centro de Os mortos não estão mais sós a personagem de Antonio Majastre, um executivo arrivista e prepotente que um belo dia, sem razões claras, é demitido da empresa em que trabalha. “Era como hedonista que chegava nessa manhã, um jovem galo multicolor e arrogante, exercendo sua autoridade sobre este galinheiro dito ‘empresa’. Era como capão que a deixava.” Então o que surge: “Depois nada mais. Escuridão. Vazio. Caos.” No caminho, entre os seres reais que habitam a vida de Antoine (a esposa, os pais, amigos), bichos simbólicos, o macaco, o esquilo, os pássaros. E gente morta, que não está mais só: “Visitado toda noite por seres mortos, dialogando noite após noite com seus fantasmas e espíritos perturbados, Antoine permanecia vítima de amnésia ao acordar.” É curioso que, neste belo romance francês, os mortos já não estejam mais sós: estavam antes sós, ou pensávamos que estavam? É uma indagação que, apresentada nestes dias em que o enfermiço global induz a pensar na morte e nos mortos, parece provocativa: hoje sabemos que os mortos nunca estiveram sós, na verdade nós estamos entre eles. Como Antoine Majastre, um dia seremos defenestrados, por mais ascendentes que sejamos, e não sabemos ao certo as razões de sermos jogados fora. Neste aspecto, é bom atentar na estranha luz lançada por Os mortos não estão mais sós, diante do que se passa do lado de fora da literatura.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com,br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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