Jornalismo, Literatura e Cinema
O mercado de notícias (2014), de Jorge Furtado, é uma espécie de neodocumentário feito das ironias da própria linguagem documental
Já pela abertura de O mercado de notícias (2014), uma espécie de neodocumentário feito das ironias da própria linguagem documental, o gaúcho Jorge Furtado traça o método de construção de sua nova narrativa. Quer discutir a realidade, o papel e a realidade-papel da mídia (jornal, televisão, internet) na sociedade contemporânea. E acaba dando com uma peça teatral do inglês Ben Jonson, escrita no século XVII, primórdios da imprensa, pois. Então seu filme se divide em camadas que se articulam numa montagem de extrema precisão e interesse. Há a camada em que o diretor reúne seu elenco para recitar, exercitando-se, o texto de Jonson. Há aqueloutro universo em que, trajados de época, os intérpretes vão viver, declamando as frases, os fatos inventados pelo dramaturgo britânico. E, sobredominando estes dois mundos, as entrevistas que Furtado opera com alguns jornalistas de sua predileção (Jairo de Freitas, Paulo Moreira Leite, Cristiana Lôbo, entre alguns) para ativar seu tema. No começo do filme o próprio Furtado é a primeira imagem dizendo um texto que será logo em seguida continuado por um ator de época. Ao longo das entrevistas, mais do que fazê-las, em certos momentos o realizador intervém, provocando, como ao revelar o descalabro de certos fatos fabricados pela mídia (como o caso do Picasso de reprodução encontrado num corredor da Previdência Social e dado como o verdadeiro quadro do gênio espanhol). O mercado de notícias dança em todas estas facetas, mas nunca se perde, pois a habilidade e a experiência de Furtado o impedem. A verdade (se é que ela existe) e o fato (se é que existe o fato puro, não fabricado pela linguagem) é que Furtado não pretende (ainda bem) resolver o problema do coração de seu tema; os recursos linguísticos do cineasta e os seus articulados entrevistados estão aí para abrirem a questão, nunca para fechá-la. O jornalismo que é visto pela literatura de Jonson que séculos depois se converte em cinema. E, no fundo, para além das poses, tudo é mídia: exposição diante de quem lê ou vê.
Cada um pode fazer seu “mercado de notícias” como quer. Falo tanto do filme de Furtado quando do mercado mesmo onde as notícias se prostituem. Os que veem pelos olhos prosaicos querem somente saber: onde está o fato? Em Conversa na catedral (1969) o romancista peruano Mario Vargas Llosa põe em cena um jornalista com veleidades literárias. Alguém lhe assopra: “—É preciso ser louco para ir trabalhar num jornal quando se tem algum amor pela literatura, Zavalita.” E mais: “—O jornalismo não é uma vocação mas uma frustração, você verá.” Provoquei meu amigo Juremir Machado da Silva, grande escritor e notável jornalista, com estas anotações de um romancista de que ele gosta. Ele me respondeu: “É preciso pagar as contas!” Juremir anotou, em A sociedade midíocre (2012), um livro sobre a derrocada moral da mídia, depois de descrever a notícia sobre o leilão de um vaso sanitário de John Lennon: “Nesse dia, um domingo à tarde, a sociedade do espetáculo entrou definitivamente na sua fase hiperespetacular, a fase escatológica ou de acumulação fecal da riqueza virtual.” Avançando um pouco mais, em A narração do fato (2009) o sociólogo Muniz Sodré faz algo que os jornalistas mais radicalmente jornalistas (sem veleidades literárias) têm dificuldade de aceitar, uma aproximação entre um fato policial jornalístico e o supra-sumo do ficcional em narrativa, o romance policial. Este parágrafo que ora termino seria o segundo tempo dO mercado de notícias já não dirigido por Jorge Furtado, mas por mim, no interior desta literatura crítica que é um pouco jornalística.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br