O Vale de Oliveira
O cineasta portugues Manoel de Oliveira queria fazer sua vers?o de Ema Bovary


O cineasta português Manoel de Oliveira queria fazer sua versão de Ema Bovary e, chegando para sua habitual roteirista, Agustina Bessa-Luís, também romancista, pediu-lhe que reescrevesse a trama do escritor francês Gustave Flaubert segundo conceitos cinematográficos. Agustina foi mais longe: compôs um romance que contracenava contrapontisticamente com o clássico de Flaubert, Vale Abraão (1991), um texto de imagens volumosas tão pouco flaubertianas. O romance é bom, criativo, sedutor, mas o filme Vale Abraão (1993) que o gênio de Oliveira extraiu das marcações literárias de Bessa Luís é um dos eventos de seu cinema, adota um rigor plástico impecável e vai pontilhando uma estática cinematográfica em que não há nenhuma concessão ao gosto fácil do público. A despeito de conter os mesmos elementos de refinamento e elegância intelectual, lê-se o livro com mais facilidade do que se vê o filme: de onde vem a exasperação que acomete o espectador com mais inquietação que aquela que o invade quando deita os olhos no livro? Tenho para mim que a atitude da maioria do público é a seguinte: leio para ser inteligente, vou ao cinema para me divertir; é esta predisposição para o riso e o entretenimento no cinema que prejudica a perfeita fruição do cinema de Oliveira pela maioria da plateia.
Mas o vale cinematográfico de Oliveira é um caso à parte na história do cinema. Juntamente com o francês Eric Rohmer, Oliveira é o realizador que melhor utiliza os aspectos literários no cinema; como Rohmer, Oliveira presta sensível reverência ao despojamento plástico e espiritual do francês Robert Bresson, fazendo com que o cinema torne a seus instantes mais puros e iniciais: uma relação sexual que se passa toda em palavras, a desglamurização das falas e das interpretações, os cenários objetivamente geométricos ao mesmo tempo abrindo-se como uma pintura impressionista (ecos do cinema do francês Jean Renoir e do pai pintor deste cineasta?). São quadros muitas vezes em êxtase que deparamos em Vale Abrão, assim como eram os planos que nos apareciam em obras como Francisca (1981) e O meu caso (1986), outras duas obras-primas de Oliveira. Uma festa neste vale de encantos fílmicos do realizador, mesmo que a aproximação a este universo seja executada com distanciamento.
A Ema de Oliveira e de Bessa Luís é manca e por aí começa sua diferença para com a criatura de Flaubert: seu erotismo com os homens é mais irônico e perturbador. As palavras de Carlos, muitas tiradas do romance, costuram literariamente as soberbas imagens de Vale Abraão; a morte de Ema, que no livro é mais recheada, no filme tem um acompanhamento de preparativos para a caminhada da personagem bastante ligado à tradição metódica da armação de cena de Michelangelo Antonioni (a captação do gesto e do vestuário do ator) e a finalização é certamente seca, abrupta, elíptica como certas sequências de Bresson (Ema cai no rio quando se esboroa a madeira podre da ponte, mas Oliveira fica longe do corpo de Ema lutando para viver, algo que no livro merece algumas linhas; a cena me evoca a exemplar cena do suicídio da mulher em Uma mulher suave, 1969, de Bresson). Uma das frases finais do romance, e que fecha a narrativa do filme, é um pouco uma metáfora do cinema de Oliveira, um signo. “Nada disso é importante”—disse ela. “Mas ninguém imita melhor do que uma bela vida”. E antes: “A sua tenacidade literária era surpreendente.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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