Reler Camilo pela Lente de Oliveira

Amor de perdicao tem cerca de 250 minutos e compoe-se de seis episodios sem titulo

18/09/2020 14:21 Por Eron Duarte Fagundes
Reler Camilo pela Lente de Oliveira

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O português Manoel de Oliveira tem seus paradoxos cinematográficos. O rigor estático de sua encenação aparentemente o conduz à literatura mais exigente e ao teatro mais cerebral, o que afasta de sua plateia aqueles que não se dispõem a exercitar a mente fora dos padrões estabelecidos (ou até mesmo alguns afeitos a outras extravagâncias, mas não àquelas que Oliveira assevera diante de suas câmaras). Amor de perdição; memórias de uma família (1978) foi rodado pouco depois de Benilde, ou a virgem-mãe (1975) e pouco antes de Francisca (1981); isto quer dizer que numa época onde a radicalização de filmar do cineasta ia mais longe do que em anos recentes, embora ele tenha conservado até o fim certos aspectos radicais de sua arte.

O interesse obsessivo de Oliveira pela figura do escritor luso Camilo Castelo Branco circula como um pêndulo pelos filmes do realizador. Em Francisca surge a figura esquiva de um Camilo que observa com malícia e cinismo a hipocrisia social de seu tempo à luz da história duma moça que morre virgem e cujo casamento com o amado é um verdadeiro ato fúnebre. Camilo foi também o centro de O dia do desespero (1992), onde a experimentação documental de Oliveira recria, em narrativa engenhosa, os atormentados dias finais do romancista, que se suicidou após uma consulta oftalmológica onde o médico praticamente lhe decretou cegueira pelo resto da vida. Nada mais natural que ele se debruçasse sobre um dos mais belos livros de Camilo, Amor de perdição (1862), para tentar entender o espírito devastador de seu patrício.

Amor de perdição tem cerca de 250 minutos e compõe-se de seis episódios sem título. Muitas vezes os atores parecem dirigir-se diretamente ao público, desdramaticamente, em exasperantes planos fixos; o texto de Camilo escorre pela imagem de Oliveira e os poucos planos móveis (uma ou outra panorâmica) são bastante lentos, tendem sempre à estaticidade. Mas poucas coisas podem ser tão cinematográficas quanto estes mergulhos pensados de Oliveira no universo de morbidez romântica de Camilo; tudo funciona com uma beleza e uma contenção de meios que aprofunda aquilo Oliveira quer dizer, ou seja, a própria ligação íntima entre sua filmografia e a literatura de Camilo.

Passando pelos rigores hibernais do francês Robert Bresson (há certos planos confessionais documentais das personagens que parecem evocações de O processo de Joana d’Arc, 1961), Oliveira faz seu próprio e único mundo de cinema. Os desempenhos descarnados e moralmente impiedosos de seus atores só poderiam existir mesmo dentro deste sistema fílmico erigido por Oliveira; António Sequeira Lopes como Simão Botelho e Cristina Hauser como Teresa de Albuquerque são centelhas de perversidade cerebral, mas também Elsa Wallenkamp como a dedicada Mariana e António J. Costa como João da Cruz traduzem sua “discreta” criatividade de intérpretes; os acordes interpretativos são todos deslumbrantes. E a voz-over do próprio Manoel de Oliveira vai tecendo as costuras que faltam: ele é o intérprete sonoro do próprio visual que está encenando; não é propriamente a literatura no cinema, mas um cinema que avança por sobre a literatura.

No final do filme, Oliveira, utilizando sua voz-over e entrando para dentro de Camilo, vai buscar uma referência num outro livro do escritor, Memórias do cárcere (1862), onde se lê: “Desde menino, ouvi eu contar a triste história de meu tio paterno Simão António Botelho. Minha tia, irmã dele, solicitada por minha curiosidade, estava sempre pronta a repetir o fato aligado à sua mocidade.” (De fato: no início de cada episódio de seu filme, Oliveira compõe um quieto plano fixo em que uma irmã de Simão, portanto a tia de Camilo, se põe a resumir a história de amor, cárcere e mortes de Simão e Teresa). Pois assim é; o cinema puxa todas as ligações possíveis com a grande literatura de Camilo e em nenhum momento perde a equivalência estética. Embora nem todos os observadores das salas de cinema estejam preparados para desfrutar estes prazeres que muitas vezes se escapam.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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