Como Tudo Se Iniciou
Primeira homenagem ao amigo Rubens, com textos deixados por ele para novos projetos, que publicaremos para manter seu legado e memoria
O Demônio das Onze Horas, no cine Praia Palace, (Pierrot Le Fou) de Jean-Luc Godard.
Por Rubens Ewald Filho. 8-10-1967
Esta foi a primeira crítica que eu fiz para o jornal da minha cidade, A Tribuna de Santos, a partir de quando passei a ser contratado como o crítico de cinema da Cidade, categoria que com muita honra exerço até hoje. A crítica veio acompanhada por dados biográficos de Godard e seus astros, Jean Paul Belmondo e Anna Karina. Não foi um emprenho fácil porque se trata de um dos trabalhos mais ousados, criativos e interessantes de sua ousada e longa carreira (está vivo até hoje e em ação!).
Falar em Godard, é como falar em Arte Moderna, pode-se achar genial, mas daí a se entende-la... Pela primeira vez em Santos é exibido em circuito normal, este filme de Jean-Luc (os outros dele ou passaram em sessões especiais ou então nem chegaram a passar! Um público inteiramente novo pode assim tomar contato com uma das coisas mais importantes que se faz em cinema hoje em dia. E este nosso público reage. Assobia, xinga, mas fica até o fim da sessão! Godard (nascido em 30 de dezembro de 1930) Godard agride, insulta, mas também fascina.
Para se entender PIerrot a melhor maneira é deixar de se preocupar e assistir simplesmente o filme. Não se importe com o título. Não há demônio algum, muito menos às onze horas. É apenas a história de um homem, Ferdinand, destruído pelo amor de uma mulher Madeleine. Na verdade, o que o filme tenta mostrar são os pontos de vista, a filosofia de Godard (a dinamarquesa nascida em 1940 Anna foi rainha da Nouvelle Vague). A mulher, insistem em chamá-lo Pierrot, embora ele passe o filme todo a negá-lo. Daí o título: Pierrot, o louco.
O que se consegue descobrir do enredo é uma confusa história de gangsters e perseguições moda de Bogart, entremeada por canções dançadas a la Gene Kelly, referências aos amigos (o diretor Samuel Fuller, Johnny Guitar, e até mesmo si mesmo (cena de Acosssado). O filme não teria razão de ser não existissem os intérpretes. Belmondo e Karina estão fazendo tudo o que querem improvisando livremente, esbanjando vitalidade. Naturalmente Godard permanece fiel a Godard. Todos os cacoetes típicos de seus filmes estão presentes neste: a aparente falta de técnica, longos poemas são lidos (Velasquez e Robert Browning) e citações literárias repetidas, o filme é dividido em capítulos e letreiros, pinturas, anúncios, numa palavra da arte Pop Art fazendo a ligação entre as cenas.
Antes de tudo Godard é um inovador. Seus filmes criaram uma nova maneira de contar uma história, são verdadeiros jornais falados, onde os personagens não podem ser alienados do seu tempo, de sua circunstância. Não é de admirar, portanto a preocupação política de seus filmes, o constante tema da Guerra do Vietname, da morte, da miséria, que a guerra traz. A preocupação com a verdade faz com que ele utilize a técnica de entrevista, com um tipo extraordinário como a rainha destronada ou com os próprios personagens. Os diálogos são retóricos,as cenas minuciosas e detalhadas. - como a própria vida, diz ele! - mas Pierrot é antes de tudo um filme de aventuras. Uma aventura picaresca segundo Karina, uma viagem a Lua segundo Godard!
O que Jean-Luc quis dizer ficou mais a cargo do subjetivismo de cada um. Pode-se achar a mensagem brilhante e meditarmos sobre a sociedade que gera os monstros, sobre a destruição final de Pierrot? (como nossa própria sociedade?). Pode-se também ficar com a dúvida que na realidade ele está se divertindo com tudo aquilo, que na verdade nós é que estamos sendo vítimas de gozação!
Gênio ou impostor? Fenômeno do século, seus irredutivos inimigos não conseguirão diminuir sua importância!
Godard para principiantes
Criador e principal nome da chamada Nouvelle Vague, nasceu em Paris a 2 de dezembro de 1930, mas é descendente de família suíça, onde com frequência se refugiou. Começou escrevendo críticas como parte da lendária equipe da revista Cahiérs Du Cinema., onde foi um dos que introduziu a famosa “politique des auteurs”, segundo a qual só consideram alguém como criador / autor de um filme, se ele estiver presente desde a elaboração do enredo até a fase final de montagem. Fez uma série de curtas, até quando estreou em 59 com um filme hoje clássico que foi Acossado/A Bout de Souffle em que consagrou Belmondo e revelou a americana Jean Seberg. Desde esses primeiros filmes revelou uma personalidade inquieta, renovadora, audaciosa, engajada, embora paradoxalmente anarquista. Seu segundo filme trata da Guerra da Argélia como O Pequeno Soldado /Le Petit Soldat, foi proibido pela censura e pouco lembrado. Mas a protagonista já era a bela Anna Karina (eles se divorciariam em 1965). Mesmo assim permanece ligado a ela, enquanto todos pensavam que ficariam com Marina Vlady, se casaria com a neta de François Maurice, Anne Wiazemsky . Realizou um grande número de filmes, 127 créditos, mas numa fase a partir de 1968, se tornou radical e guerrilheiro. Retornará em 1985, com o famoso Je vous salue Marie. E Carmen de Godard e Détective.
A Bela Karina e o feio Belmondo.
Anna veio a Paris para tentar a sorte como modelo fotográfico. Em fins, de 59 respondeu a um anuncio em que Godard procurava uma estrela para seu filme, mas que pudesse ser também ser sua amiga. Em março de 61, se casaram na época da censura de O Pequeno Soldado. E passou a ser a musa inspiradora de que ele necessitava. Filmes como Uma Mulher é uma Mulher, Viver a Vida, Bande à Part, Alphaville, Made in USA e até de outros cineastas (A Religiosa, La Ronde, O Estrangeiro de Visconti etc. Mas Godard não gostava disso e os dois iriam se separar. Karina iria ainda tentar no cinema americana com filmes como Mago, o Falso Deus, O Tirano da Aldeia, Justine etc. Belmondo (1933) deve ter sido o ator mais feio do cinema francês e também o mais popular, super querido pelo público (se especializando em filmes de aventura e cenas de perigo inclusive o grande sucesso no Brasil chamado O Homem do Rio, 64. Problemas de saúde impediram o resto de sua carreira.
Sobre o Colunista:
Rubens Ewald Filho
Rubens Ewald Filho é jornalista formado pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), além de ser o mais conhecido e um dos mais respeitados críticos de cinema brasileiro. Trabalhou nos maiores veículos comunicação do país, entre eles Rede Globo, SBT, Rede Record, TV Cultura, revista Veja e Folha de São Paulo, além de HBO, Telecine e TNT, onde comenta as entregas do Oscar (que comenta desde a década de 1980). Seus guias impressos anuais são tidos como a melhor referência em língua portuguesa sobre a sétima arte. Rubens já assistiu a mais de 30 mil filmes entre longas e curta-metragens e é sempre requisitado para falar dos indicados na época da premiação do Oscar. Ele conta ser um dos maiores fãs da atriz Debbie Reynolds, tendo uma coleção particular dos filmes em que ela participou. Fez participações em filmes brasileiros como ator e escreveu diversos roteiros para minisséries, incluindo as duas adaptações de Éramos Seis de Maria José Dupré. Ainda criança, começou a escrever em um caderno os filmes que via. Ali, colocava, além do título, nomes dos atores, diretor, diretor de fotografia, roteirista e outras informações. Rubens considera seu trabalho mais importante o Dicionário de Cineastas, editado pela primeira vez em 1977 e agora revisado e atualizado, continuando a ser o único de seu gênero no Brasil.