Vidas em Golpes
O filme abre com uma daquelas constrangedoramente aborrecidas homenagens contratadas para um aniversario
O filme abre com uma daquelas constrangedoramente aborrecidas homenagens contratadas para um aniversário, com o discurso de lugares-comuns duma apresentadora e carro de som; a câmara observa, distanciada, todos os gestos e as falas das pessoas naquele rincão remoto, semi-urbano, região de Contagem, Minas Gerais, proximidades de Belo Horizonte. No coração do mundo (2019), realizado a quatro mãos por Gabriel Martins e Maurilio Martins, vai enveredar, nas cenas seguintes, por coisas muito mais ásperas e espinhosas que esta abertura em que, melodramaticamente, com o olhar melífluo do homem para a mulher, fixo e quase sem sentido em seu exagerado sentido, uma namorada homenageia seu parceiro.
As difíceis vidas daqueles seres suburbanos remetem a toda uma série do melhor na história do cinema brasileiro, em que algumas figuras de nosso mundinho foram transformadas em imagens cinematográficas duma crônica social e humana cheia de preciosos apontamentos sociológicos. Uma das referências de No coração do mundo é claramente uma das citações do filme. Numa determinada imagem vemos uma tabuleta em cima duma mesa, da tabuleta consta o nome duma escola, o nome da escola homenageia o cineasta brasileiro Carlos Reichenbach; do cinema de Reichanbach, os Martins retiraram, para No coração do mundo, os aspectos rudes dos fragmentos de existências de subúrbio. O espectador que vê cinema brasileiro há muito tempo pode pensar, ao meditar no olhar variado e multiforme sobre as criaturas dum local alinhadas de maneira entrecruzada num roteiro, em Chuvas de verão (1978), de Carlos Diegues, com a diferença que hoje tudo é mais cru e violento, em linguagem e ações físicas.
A vadiagem e os pequenos golpes daquelas vidas seguem em pauta, articulando-se, relacionando-se. Até que três daqueles indivíduos (Marcos e sua namorada Ana, liderados por Selma) decidem coroar tudo com um grande golpe, que solucionará suas vidas: o perigoso último grande assalto, que derivará para a intromissão da violência inóspita após sua bem-sucedida execução. Deserdados e perdidos, as três personagens magnificamente vividas por Leo Pyrata, Grace Passô e Kelly Crifer, são mostradas em seu retorno ao ramerrão após o frustrado grande golpe; Selma manda-se com o veículo alugado do assalto, Marcos segue sua vagabundagem e o olhar perdido de Ana/Kelly na cena final, dentro dum ônibus, me evoca outro clássico brasileiro, Perdida (1975), do também mineiro Carlos Alberto Prates Correia, onde a protagonista estava num ônibus para BH e a câmara captava seu olhar desconsolado e marcado pelas experiências ao longo da narrativa.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br