O Homem Ambíguo

A Salamandra, de Alain Tanner, é um convite à meditação sobre o papel da imagem cinematográfica na sociedade dita real

17/03/2014 13:03 Por Eron Fagundes
O Homem Ambíguo

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As coisas não são muito claras na sociedade humana vistas a partir da sociedade suíça dos anos 70 do século XX pela agudeza cinematográfica de Alain Tanner. O que parece claro é o olhar de Tanner sobre este estado de coisas, ambíguo e problemático. Em A salamandra (La salamandre; 1971), um de seus trabalhos iniciais, Tanner dá uma aula de como expor questões intrincadas do comportamento humano e dos fatos sociais com uma transparência que seduz por sua profundidade e despoja a reflexão do que pode haver de pedante em suas teses.

Antes dos créditos iniciais, uma sequência de um homem que está limpando uma arma e na última cena vê a arma disparar contra si, tombando; a imagem final da sequência é duma garota que olha com um sorrateiro sombrio para a câmara. Acidente? Assassinato? Ou mesmo suicídio? Durante a apresentação dos créditos, vemos a garota, acompanhada por movimentos laterais da câmara, deslocar-se enigmaticamente por cenários da cidade. A sutileza de montagem e imagem obscuras da cena com a arma joga com o poder do cinema de atribuir múltiplos significados a fatos objetivos. Que aconteceu? Sabemos e não sabemos, relatamos e inventamos. O cinema vale-se da relatividade do olhar para demonstrar aquilo que todas as artes  sabem: é possível brincar com a percepção do espectador. Tanner o faz com mestria na sequência pré-créditos. Antes dele, o italiano Michelangelo Antonioni em O grito (1957) e o inglês Alfred Hitchcock em Um corpo que cai (1958) o fizeram. Todavia, Tanner é extremamente original em seu jeito de retrabalhar o assunto.

Depois dos créditos, se descreverá, pouco a pouco, o encontro de dois amigos —Pierre, um jornalista; Paul, um escritor que vive com a mulher e uma filha pequena na campanha— em que um deles, Pierre, está às voltas com três artigos sobre o Brasil e recorre a Paul, seu amigo escritor, para a história dum militar que se acidentou com sua arma. Assim, ambos chegaram à figura de Rosemonde, a sobrinha do militar e que estava junto dele quando ocorreu o acidente; Paul, o ficcionista, atribui a Rosemonde o atentado contra o tio, estabelecendo conexões sociais e familiares, enquanto Pierre, irritado e  aferrado a suas origens jornalísticas, pretende fazer sua investigação dos fatos para que a história de Paul não seja exclusivamente fantasiosa. Mais adiante, Tanner cruza planos da garota nas ruas e na piscina. O ponto conflitual daquilo que Tanner se esforça por dizer com seu filme se dá quando Pierre, forçado por sua aura de jornalista, busca Rosemonde e a traz para o convívio dele e de Paul; ocorre que Paul, que já estava escrevendo sobre a garota a partir de sua imaginação, perde a inspiração diante do encontro com o real e nenhuma página sai por alguns dias.

A salamandra, com uma sutileza metalinguística que foge às erupções do franco-suíço Jean-Luc Godard, trata desta questão, da forma documentária que se pode imprimir a um filme de ficção (algo que se incrusta em A salamandra) e das liberdades que se pode tomar com fatos que na verdade nunca são tão objetivos assim. Fotografado em nuanças de preto-e-branco por Renato Berta, tendo como narradora aqui e ali a voz de Anne-Marie Michel e contando nos papéis centrais com intérpretes ajustadíssimos como Bulle Ogier, Jean-Luc Bideau e Jacques Denis, A salamandra, desde sua adrede obscura cena inicial, é um convite à meditação sobre o papel da imagem cinematográfica na sociedade dita real.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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