As Cores da Literatura

Em seu novo trabalho Paulo Scott segue sua busca duma certa linguagem das ruas, que vagabundeia pelos becos

09/10/2020 14:09 Por Eron Duarte Fagundes
As Cores da Literatura

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O poeta francês Arthur Rimbaud fez uns versos dedicados às cores das vogais. O “a” era negro. Outro francês, Stendhal, pôs no título de seu romance mais conhecido o “vermelho” e o “negro”, simbolismo que fez exegetas perder o sono ao longo dos séculos. Há uma letra escarlate num romance do norte-americano Nathaniel Hawtorne. O mais das vezes cores e números são aleatórios e intencionais —ao mesmo tempo— em literatura.

O brasileiro Paulo Scott titula seu novo livro Marrom e amarelo (2019). Desde os primeiros movimentos da narrativa a fúria crítica se estabelece, no coração do “Brasil, país sonâmbulo”, “rotulado mundo afora como o lugar da harmonia étnica, miscigenação que tinha dado certo, lugar onde a prática de homens brancos estuprando mulheres negras e mulheres indígenas tinha corrido solta por tantos séculos”. O racismo à brasileira é o foco da história contada por Scott. Uma questão de cor, aparentemente, ou, mais cruamente antropológica, uma questão cultural: os hábitos cotidianos e ancestrais dos outros é que nos incomodam. A personagem que narra o romance expõe a ossatura dos paradoxos iniciais desde o começo: a harmonia étnica feita de estupros de mulheres negras e indígenas. Quem é marrom? Quem é amarelo? Aleatório, intencional, a sombra pensada do narrador divaga pelo título do romance. Como no poema de Rimbaud e no romance de Stendhal: que definem as cores? quem define as cores?

Em seu novo trabalho Scott segue sua busca duma certa linguagem das ruas, que vagabundeia pelos becos, que atira a sintaxe para vários lados e onde as frases se acumulam um pouco instintivamente, um pouco simploriamente. Às vezes há um certo desleixo formal e algumas facilidades na literatura de Scott, certo faz parte de seu jogo estético, mas a narrativa por via de regra não chega a segurar inteiramente a onda do artifício realista que se pretende encenar. Em Marrom e amarelo há, no entanto, algo que produz uma saliência; é a urgência de seu assunto, o qual faz com que, alguns momentos, a medula da linguagem seja atingida, a geografia estilística torna-se mais forte um pouco do que na ficção anterior do escritor. Esta aproximação ao trivial pela geografia do estilo sai na caça da própria geografia da cidade de Porto Alegre, amiúde o narrador esmiúça o espaço porto-alegrense, “como o Xis do Bodinho, o trailer de lanches no terreno da esquina da avenida Bento Gonçalves com a Humberto de Campos”. Não é algo incomum nem novo no processo romanesco: o ambiente físico nominado. No caso de Porto Alegre, no romance O resto é silêncio (1943), Erico Verissimo punha uma personagem que “saiu a caminhar pela rua dos Andradas”, que depois “ia ao Mercado Público” que ainda “na praça Parobé vendedores ambulantes faziam discursos”. Mas em Marrom e amarelo o sentido físico, por um despojamento extremo de texto e situação em certo sentido, se agudiza e parece mais simples, às vezes simplório mesmo. Temos também referências cinematográficas, o filme Memórias do cárcere no cinema Coral, o filme A flauta mágica no Instituto Goethe, que no fundo, para quem conhece, tem um sentido de espaço e de tempo (tempo como sinônimo de época em que os cinemas referidos passaram estes filmes). E uma referência histórica central: o Cio da Terra, em 1982, nas cercanias dos Pavilhões da Festa da Uva, em Caxias do Sul, na serra gaúcha.

Destes circunlóquios todos, o que mais bravamente se acerca do interesse do leitor, neste mato tenso mas sem grandes espessuras que é o romance de Paulo Sott, é a possibilidade de desmontar “a incomparável cordialidade brasileira”. Algo que pode ser forte e misterioso (marrom e amarelo?) como, no fim da história, “as rajadas do vento minuano, na direção de Santa Vitória do Palmar e depois na direção do Uruguai”. Mais uma anotação espacial, agora fora dos limites da cidade.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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