Sata na Aldeia Hungara
Na abertura deste filme rodado em despojado preto-e-branco que salienta certos planos obscuros e abstratos em sua escuridao
Poucas vezes se teve a oportunidade de deparar uma interferência tão radical, no cinema, na estrutura de ver/ouvir uma imagem quanto em Sátántangó (1994), uma espécie de conto de aldeia transcendente filmado, sob a forma dum “tour de force” em narrativa-rio, pelo diretor húngaro Béla Tarr.
Na abertura deste filme rodado em despojado preto-e-branco que salienta certos planos obscuros e abstratos em sua escuridão, damos com um longo enquadramento fixo, onde o espectador acompanha, aridamente, um agrupamento de bovinos que copulam e mugem. As características primitivas destas cenas de fazenda remota topam, numa certa grandiloquência formal que passa a estudar-se a si mesma, sub-repticiamente, suas próprias formas de encenação, deslumbrando o olhar ávido do espectador, este olhar que é o alvo central da reflexão estética empreendida por Tarr neste filme. Após a longa tomada parada dos bois para cá e para lá fazendo sexo e emitindo seus sons primevos e rudes, um movimento lateral da câmara, por trás das edificações dos estábulos, se desloca ao mesmo tempo em que os animais fazem este movimento: a câmara persegue os bovinos e questiona o que vemos e os interesses do que vemos.
Sátántangó está ambientado numa fazenda onde um grupo de pessoas reside e convive entre si. É um retrato húngaro de aldeia. As inovações na estrutura de ver/ouvir talvez só tenham semelhanças em obras muito longínquas. A múmia (1969), de Chadi Abdel Salam, é uma destas aproximações, este filme egípcio é, segundo o crítico francês Guy Hennebelle em Os cinemas nacionais contra Hollywood (1975), um “relato encantatório, que possui a fascinante beleza de um conto popular narrado por um almuadem”. O filme de Tarr é um pouco isto: sua revolução da linguagem cinematográfica nasce duma raiz húngara, um pouco os bois mugindo e copulando numa fazenda. Fata Morgana (1969), do alemão Werner Herzog, e Sayat Nova, a cor da granada (1969), do armênio Sergei Paradjanov, o primeiro pela plástica dos movimentos laterais, o segundo pela hipnose dos enquadramentos, são outros momentos cinematográficos que podem ser evocados como parentes das interferências experimentais de linguagem de Tarr.
Chove constantemente em cena. A lama percorre as estradas do lugarejo. Tarr é bastante geométrico na disposição das personagens como figuras do plano cinematográfico: o espaço fílmico em êxtase. Certos movimentos de câmara para o lado, eventos plásticos, parecem emular a música que sublinha estes movimentos, uma música de sanfona por exemplo. É uma reeducação muito própria do ato de ver/ouvir uma imagem em movimento: é aí que se instala a grande interferência estilística dum filme como Sátántangó. Palavra, imagem e sensação sonora provocam uma flutuação captada pela câmara, que muitas vezes se movimenta na floresta local, entre árvores, com esta inusitada atmosfera flutuante.
Ao longo da trama, amores e desamores. Inclusive um adultério. À luz escura a imagem. E na cena que dá título ao filme, o tango de Satã. A mulher dança, diverte-se: o marido e o amante. O tango exulta em cena: um festim de sibaritas aldeões. A última parte do filme se contrapõe à festa, em sua abertura: o que se vê é um longo plano fixo num velório; as pessoas estão imóveis, como estátuas, no esquife aberto o corpo defunto. “Ir ao céu? Ter pesadelos?”. É o título de um capítulo. Após a reunião de um grupo, após o afastamento deste grupo da visão da câmara, um homem, observado pela fria imagem, vocifera: “Malditos estavam! São um montão de lixo!” No fim é a personagem do Doutor, em casa, fechando-se em seu escuro, que dá a última voz narrativa, um melancólico debruçar-se sobre algumas anotações em torno da chuva de outono que perpassou quase a totalidade das cenas do filme. Depois do tango, Satã: a música, a festa, a dança trouxe Satã para os homens. Ética religiosa ou mito estético de Tarr?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br