A Interioridade do Verbo em Bernanos

Diário de um Pároco de Aldeia: romance do francês Georges Bernanos

26/03/2014 15:02 Por Eron Fagundes
A Interioridade do Verbo em Bernanos

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

Diário de um pároco de aldeia (Journal d’un curé de campagne; 1936), o romance do francês Georges Bernanos, está ambientado na província francesa, no interior, “à la campagne”. É ali que Bernanos isola sua personagem, um jovem padre que convive com colegas religiosos mais experientes e uma comunidade desconfiada para com os atos da Igreja ao mesmo tempo em que deles necessita, para esta grande e tensa meditação tão espiritual quanto estética que é a narrativa do livro.

Já no primeiro parágrafo Bernanos é um herdeiro do narrador cediço e decadente do realismo do século XIX. “Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem.” O leitor tem a impressão de que já se sentiu algo parecido a esta atmosfera do enfado em algum lugar? Numa crônica de 1898 sobre o Senado brasileiro, Machado de Assis vai concluir com a ação dum porteiro que fecha as portas da casa e, escreve Machado, “esvaiu-se no ar, a caminho de algum cemitério, provavelmente.” Machado se ri, entediado. “Se valesse a pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo, mas não vale; todos os cemitérios se parecem.” Para Machado como para Bernanos parece não valer a pena gastar o verbo com as descrições físicas de um cemitério ou de uma paróquia. No segundo movimento de seu romance, o escritor francês aduz que sua paróquia é devorada pelo tédio, e exclama que as outras paróquias são também assim. E mais adiante afirma que a aldeia (“village” está no texto em francês) pode ser resumida na paróquia onde ele próprio, um padre, age sem na verdade poder fazer nada por ela ou pelas pessoas doloridas em torno dela.

Assim, Bernanos vai compondo o diário difuso e perturbador de sua personagem, uma oscilação de sentimentos que vem desde o tédio até as inquietações mais tenebrosamente espirituais ou mesmo febris diante do universo humano que, ainda que no interior, é sempre abissal.

Desde as frases iniciais, o tédio interiorano é associado ao câncer; o tédio cresce e vira um câncer, no padre este câncer situa-se no estômago. Antes de chegar a seu fim, bem antes, a personagem se questiona se é feliz ou não, para anunciar, duas frases depois, que a condessa, uma de suas confidentes, morreu. Então, sobre esta frase da morte, ecoa de novo o questionamento da felicidade: “Suis-je heureux ou non, je ne sais”.

Os enigmas existenciais se acumulam em Diário de um pároco de aldeia. É um existencialismo paralelo ao de Jean-Paul Sartre: cristão. O diário solta uma oração entre parágrafos dolorosos: “Si j’allais ne plus aimer!” Se eu fosse não mais amar, se eu fosse amar menos, se eu deixasse de amar, se houvesse em mim menos amor: numa frase de Bernanos tantas coisas! E finalmente o momento de êxtase de sua conclusão narrativa, em que a carta do senhor Louis Dufréty ao padre de Torcy descreve os instantes derradeiros da vida do protagonista. “Il a prononcé alors distinctement, bien qu’avec une extrême lenteur, ces mots que je suis sûr de raporter très exactement: ‘Qu’est-ce que cela fait? Tout est grâce.” Robert Bresson, o grande cineasta  francês, filmou este Journal de Bernanos em 1950, com uma notável contenção na utilização do texto, e soube dar um admirável peso cinematográfico a estes movimentos verbais finais do livro. Pode-se dizer que Bresson se valeu muitas vezes textualmente da literatura de Bernanos, porém soube dar a originalidade pela montagem de abstrações caracteristicamente bressonianas; no filme vemos excertos do diário escrito, sobre cujas imagens a voz do padre reproduz o que está na escrita, sem contar a inserção de diálogos, mais esparramados em Bernanos e mais condensados em Bresson. Enfim, tudo é graça, de Bernanos a Bresson, e enfim, se se pudesse, “ne plus aimer”, onde recairia o amor maior? Puro enigma.

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha
Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro