A Vitória de Satã; A Arte Que Vence

Sob o sol de Satã, de Maurice Pialat, vencedor em Cannes, apresentava uma narrativa pesadamente literária e anacrônica

07/05/2014 10:36 Por Eron Fagundes
A Vitória de Satã; A Arte Que Vence

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“Ah! O diabo, o outro, é sem dúvida um mentiroso astuto e assombroso,
esse rebelde aferrado à sua glória perdida,
nutrindo um desprezo profundo pelo rebanho humano grosseiro e cabisbaixo,
que sua astúcia multiforme provoca ou reprime de acordo com sua vontade”
(in Sob o sol de Satã, de 1926, de Georges Bernanos, em tradução de Jorge de Lima).

 

 

O francês Maurice Pialat recebeu  a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes por Sob o sol de Satã (Sous le soleil de Satan; 1987), extraído da obra do romancista (também francês) Georges Bernanos, um romance publicado em 1926, quando seu autor já andava pelos trinta e oito anos e estava estreando nas letras sob a desconfiança de gente importante, como outro grande escritor francês hoje ignorado, André Gide. Quando ao filme de Pialat, apesar do prêmio máximo, a sessão em que foi exibido em Cannes se tornou conturbada; vaias ecoaram na sala quando o diretor subiu ao palco, e ele saiu-se com esta: “Vocês não gostam de mim. Eu também não gosto  de vocês.” É um episódio característico dos aspectos sobranceiros do cinema de Pialat: tem alguma coisa da solenidade acima do público, não se importa com as incompreensões da plateia e assume olimpicamente, elitismo de intenções (como o próprio padre Donissan, personagem do livro e do filme, que, à maneira o próprio Diabo, seu duplo-oposto, olha para os movimentos do povo um tanto por cima dos olhos). Curiosamente, no filme que foi seu maior  sucesso, Aos nossos amores (1983), Pialat abordou assuntos mais compreensíveis pelo espectador de seu tempo, os dilemas da juventude intermediária da década de 80 em suas relações com sexo e família, daí ser mais bem recebido que este mergulho sombrio e sem concessões nas preocupações místicas de Bernanos.

Pialat está longe de ser um ente de religião como Bernanos. Nestes mares o francês Robert Bresson, que filmou Bernanos e é uma das influências de Pialat, tem mais afinidades com Bernanos: acreditam mais, Bernanos e Bresson, em catolicismo e padres que Pialat. Mas Pialat sabe assumir com autenticidade a porção Bernanos de seu filme. No entanto, o que parece interessar sobremaneira a Pialat é a presença do mal no mundo que Bernanos aborda desolado. “Je suis desolé” é uma expressão do cotidiano francês que pode estar na boca (ou na câmara) de Pialat em cada cena de Sob o sol de Satã: desolei-me, lamento, mas Satã triunfa sobre estas piedosas criaturas (os padres Donissan e Menou-Segrais) para que a arte, chafurdando-se no mal, possa finalmente vencer.

Além do direto contato com Bernanos, existem umas possíveis sombras de leituras de textos de Dostoievski, especialmente Os irmãos Karamazov (1880) no Sob o sol de Satã de Pialat. Quando o padre Donissan empreende uma caminhada na noite rumo à paróquia do padre Menou-Legrais, Pialat encena um encontro, alegórico e realista, revelador e aterrador, da personagem com um ser meio macabro que vem a ser a encarnação de Satã; não há aí um pouco das conversações do Karamazov mais demente com o Diabo em Dostoievski? Ao amanhecer no campo, o cenário do encontro com o Diabo, Donissan topa com Germaine, codinome Mouchette, o diabinho adolescente da parábola —o veneno do verbo na boca de Sandrine Bonnaire, exacerbando-se desde Aos nossos amores, é uma dádiva estética de Pialat e sua intérprete.

Se em Aos nossos amores Pialat aparece como ator na pele do pai da protagonista, em Sob o sol de Satã ele vai atuar como o padre mais velho, Menou-Legrais. Sua figura impositiva vai dividir a cena com outra figura impositiva, porém mais jovem, Gérard Depardieu, que vive Donissan; são ambos duas peças fundamentais do elemento de linguagem de Sob o sol de Satã, fechado tudo por este terceiro elemento notável que é Sandrine. A boca de Sandrine e suas entonações parecem ter sido feitas especialmente para dizer os textos dos filmes de Pialat. Além disto, ela sabe pôr em cena a atmosfera Pialat de cada cena: quando mata, entre o acidental e o desejado, um de seus amantes aos primeiros quinze minutos de filme; quando, ao contar a outro de seus amantes, um deputado, o assassinato e este lhe diz que não ouviu nada, que é como se nada tivesse acontecido, tentando sepultar a culpa da jovem amante, Sandrine interpreta inicialmente uns instantes de silêncio perplexo, que no instante seguinte vai ter a um grito irrefreavelmente neurótico e diabólico; ao cortar-se o pescoço com uma navalha, Germain/Mouchette tem em Sandrine um meio assombroso, lá por uma hora de narrativa.

Pialat, falecido em 2003, começou suas veleidades artísticas na pintura. Ele chegou a fazer um belo filme sobre o pintor holandês Van Gogh. Mas as relações de seu cinema são mais literárias, como é habitual no cinema francês, que gerou Alain Resnais e Eric Rohmer. Nos anos 80, Aos nossos amores parecia mais espontâneo e verdadeiro que Sob o sol de Satã, que, segundo o olhar daquela década, apresentava uma narrativa pesadamente literária e anacrônica. A oportunidade de rever há algum tempo Aos nossos amores e, agora, Sob o sol de Satã opera uma inversão relativa: a espontaneidade de Aos nossos amores já não parece tão rica, embora ainda fascinante, e os rigores à Bernanos em Sob o sol de Satã surgem mais cinematograficamente, sem embargo das barras literárias que apresentam. Provavelmente hoje Sob o sol de Satã tem uma persistência formal e temática muitas vezes maior que Aos nossos amores.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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