Eis a Hora de Satã
Sob o sol de Satã, o primeiro romance de Georges Bernanos, é a introdução de um anúncio profético
Georges Bernanos, romancista católico, anuncia a chegada de Satã no horizonte do século XX. Sob o sol de Satã (Sous le soleil de Satan; 1926), seu primeiro romance, é a introdução deste anúncio profético: as transformações do homem ao longo do século XX preparavam o berço para Satã; a convivência anacrônica entre o desejo de transcendência e a urgência de viver contemporaneamente perturbaram o método do humano, segundo os dilemas de Bernanos. Este escritor de solenidade gaulesa foi filmado com austeridade espiritual pelo cineasta francês Robert Bresson: no lugar das palavras impressivas, as imagens mais precisas e interiores do cinema; quando estas palavras à Bernanos acudiam inevitavelmente, um significado profundo por baixo da imagem-palavra. Herdeiro um pouco do russo Dostoievski, reelaborando as neuroses do delirante russo, Bernanos gerou algumas crias diversas; entre elas, os brasileiros Otávio de Faria e, em alguns aspectos, Lúcio Cardoso. Romancista católico, o catolicismo intelectual de Bernanos difere muito do catolicismo narrativo do inglês Graham Greene.
Mouchette, o nome clássico de mulher na ficção de Bernanos, vai aparecer pela primeira vez neste romance inicial. Mas no início chama-se Germaine Malorthy. Mouchette é um nome de guerra: como se fosse uma prostituta. Na verdade, Bernanos a descreve como uma fêmea de vida desregrada, uma jovem de amantes; mata um amante, se desespera diante dum outro amante ao relatar o assassinato; mais tarde Mouchette se mata, cortando a garganta. Mouchette é uma das figuras sobre as quais recaem as piedades verbais de Bernanos em Sob o sol de Satã. Morta Mouchette, o texto de Bernanos passa a abordar a vida de um de seus confessores, o padre Donissan, no lugarejo conhecido como Lumbres. Entre estes dois pólos, a pecadora mortificada Mouchette e o cura a quem o contato com o pecado impõe dúvidas religiosas navega o verbo muitas vezes de altissonância narrativa de Georges Bernanos.
Na abertura de Sob o sol de Satã, o narrador de Bernanos utiliza um reiterativo e imponente “voici”. “Voici l’heure du soir qu’aima P.J. Toulet. Voici l’horizon qui se défait.” E, no mesmo parágrafo, após aludir a uma grande nuvem de marfim que se debruça sobre um sol crepuscular, repica: “Voici l’heure, du poète qui distillait la vie dans son coeur, pour en extraire l’essence secrète, embaumée, empoisonnée.” O que destila mesmo é a capacidade evocativa das palavras de Bernanos para nos dar o conceito desta hora de Satã, que parecia chegada no alvorecer do século XX.
No último gemido do romance de Bernanos ainda ouvimos o manto contaminado pelo pecado e pela dúvida exclamar (“s’écrier”):
“Tu voulais ma paix, viens la prendre!...”
“Querias minha paz (meu espírito), vem pegá-la!” se afigura um desafio para o Mal. O desafio literário de Bernanos é expor estas perfurações com uma grandeza que ultrapassou os vaticínios sobre a sobrevivência histórica do ficcionista dados por alguns cérebros que no início do século passado na França eram prestigiadíssimos, como André Gide e Daniel Halévy.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br