Os Fios das Navalhas: Literatura e Cinema

Durante um bom tempo, a fama de escritor do ingles William Somerset Maugham se alicercou em sua capacidade de contar historias e interessar o leitor habitual

05/11/2020 14:25 Por Eron Duarte Fagundes
Os Fios das Navalhas: Literatura e Cinema

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I — UM MESTRE ORIGINAL

Durante um bom tempo, a fama de escritor do inglês William Somerset Maugham se alicerçou em sua capacidade de contar histórias e interessar o leitor habitual. Isto —e mais o sucesso comercial que logo desembarcou em sua literatura— aguçou a desconfiança de analistas esnobes e apressados. É, todavia, falso reduzi-lo a um contador de histórias desinteressado de reinventar o processo estético da narrativa literária; é bem verdade que seu texto não propõe as deformações morfológicas e sintáticas do irlandês James Joyce nem vai na direção dos fluxos vocabulares e internos do francês Marcel Proust. Mas está longe de valer-se, ipsis litteris, do classicismo do século XIX, como o faz seu patrício Edward Morgan Forster; nem é um artista feito para contar trivialidades a quem não tem outra coisa para fazer. De uma certa maneira, Maugham tem culpa no cartório nesta fama limitadora, porque muitas vezes ele deixou pistas de que seria somente isto, um contador de histórias.

A leitura de O fio da navalha (The razor’s edge; 1944) deixa bastante claro que Maugham é um artista criativo da palavra: e renovador. No romance o escritor cria um particular narrador em primeira pessoa. Este narrador não é uma personagem central do livro: é uma espécie de primeira pessoa testemunhal — algo próximo daquela primeira pessoa que aparece no parágrafo inicial de Madame Bovary (1857), do francês Gustave Flaubert. Mas a primeira pessoa de Flaubert depois desaparece, dando lugar ao narrador onisciente, que muitas vezes se disfarça nos discursos indiretos das personagens. Em Maugham esta primeira pessoa testemunhal vai estar o tempo todo em cena: é uma personagem, mas nunca é central na história, nem suas características afetivas são vasculhadas, como ocorre às outras personagens. Este narrador assume a forma do próprio escritor, Somerset Maugham, desde as anotações iniciais, quando fala dum romance em torno de Guaguin que Maugham publicara anos antes. Maugham, o autor convertido em narrador e personagem, é uma sombra entre os demais seres do livro: construído como a recapitulação de uma série de episódios testemunhados por Maugham entre indivíduos com os quais o escritor privou, O fio da navalha tenta este ar de íntima realidade para aproximar o leitor da veracidade da história. Poderia ter dado a apalavra (a primeira pessoa) a Larry ou a Isabel ou a Elliott, personagens mais centrais, mas aí o processo de sofisticação seria outro. Maugham vai para dentro de sua história e a manipula com habilidade de reconstrução dos fatos e notável refinamento de estilo, depurando, de maneira profunda, citações que poderiam parecer deslocadas e superficiais em outras penas, como essa sutil e devastadora nota de aspectos da ficção do americano anglicizado Henry James: “Mesmo um observador sutil e cuidadoso como Henry James, embora tivesse vivido quarenta anos na Inglaterra, jamais conseguiu um inglês que fosse cem por centro inglês.” As preocupações  de Maugham com a linguagem, ao escrever este romance que se passa em boa parte em Paris entre americanos, são aceleradas desde as notas iniciais de O fio da navalha: “A barafunda que fazem os escritores ingleses quando se atiram à empreitada só pode ser comparada à confusão que fazem os escritores americanos quando tentam reproduzir o idioma inglês como é falado na Inglaterra. A gíria é a grande arapuca. Nos seus contos ingleses, Henry James sempre fez uso dela, nunca da mesma maneira que os ingleses; assim sendo, em vez de conseguir o desejado efeito coloquial, a maior parte das vezes dá ao leitor inglês um desagradável sobressalto.” Definitivamente, não era um contador de histórias no sentido mais limitado que muitos veem em sua obra.

O fio da navalha apresenta uma galeria de notáveis tipos a que só a mestria de Maugham logra dar densidade. Neste aspecto, lembra um inglês do século anterior, Charles Dickens, porém em outras formas, em outros espíritos, em outras visões de mundo. A figura de Larry, cuja busca pelo autoconhecimento o afasta do amor duma mulher fazendo-o correr o mundo neste périplo espiritual, é o que inicialmente assombra a escrita de Maugham. Chamando seu livro de romance, sem o saber ao certo, o romancista define: “Este livre consiste das recordações de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos.” Edificado com os retalhos de lembranças do narrador (tão estranho e inusitado quanto as criaturas que ele dispõe nas páginas), Larry aparece assim mesmo ao leitor: sabemos muito pouco dele, mas ele impressiona. Elliott Templeton, a personagem de esnobe social, talvez seja a que está mais próxima do narrador: no início do livro é Elliott quem convida Maugham, o narrador, para uma festa de amigos. Ao entrar nesta festa, o narrador conhece a irmã de Elliott, mas principalmente a filha desta, Isabel, e o namorado de Isabel, Larry. O amor irrealizado de Larry e Isabel é uma espécie de centro temático que Maugham vai semeando com uma sensibilidade aparentemente fácil que o leva a uma inesperada profundidade íntima dentro de sua história; o casamento de Isabel com um amigo de Larry, Gray Maturin, e a breve tentativa matrimonial de Larry e uma moça chamada Sophie, que o redentor Larry se esforça por tirar do vício do álcool e das relações sexuais de submundo, são fenômenos paralelos que ajudam a elucidar a própria conduta amorosa de Isabel e Larry, a paixão inconsumada.

Maugham, o narrador nascido da figura de seu autor, desliza indelével entre as demais personagens. É, muitas vezes, somente um olho literário: não se apaixona, não faz sexo, é um observador e um autor de textos. Uma personagem curiosa à parte dentro da literatura: mas não se expõe, como o americano Henry Miller; expõe os demais, certamente. Sophie, por exemplo, uma mulher de alcova que na cena seguinte aparece como a noiva de Larry, o homem da sociedade. “Sua aparência chocou-me. Quando eu a vira naquela espelunca da Rue de Lappe, escandalosamente pintada, embora estivesse com aparência atroz e muito bêbada, havia nela um quê de provocante e até mesmo de vilmente sedutor; mas agora não tinha a mínima graça e, embora fosse um ano ou dois mais moça que Isabel, parecia mais velha.” É um olhar contido mas cruel do narrador para a outra personagem. Mais cruel ainda o é com Isabel, no fim do livro, ao desmascarar a maldade de que ela usou para atrair (ou reatrair) Sophie ao vício e tirá-la do caminho de Larry, o amor impossível de Isabel. Ao falar da morte de Sophie, degolada e jogada ao rio, Maugham —seu narrador— diz frontalmente a Isabel: “—Não; mas eu sei. Acho que foi você quem a matou.” O narrador de Maugham, feito de retalhos do escritor, não tem sua vida emocional dentro do livro: adota as vidas emocionais alheias, e interfere nelas. É desta forma de construir uma história que Somerset Maugham extrai a engenhosidade e o fascínio de seu romance.

II — UM MELODRAMA EXISTENCIAL DOS ANOS 40

Edmund Goulding, inglês como Maugham, filmou para o produtor americano Darryl F. Zanucks, às expensas da Fox, em 1946, O fio da navalha. Em linhas gerais, ele procurou manter-se fiel àquilo que o livro de Maugham conta. Vale-se, inclusive, do narrador-over, a personagem-testemunha que é o próprio Maugham dentro da cena. O filme abre com a evocação da personagem que vai mais interessar ao narrador-personagem, Larry. A voz-over do ator Herbert Marshall (que interpreta o romancista) aparece sobre as imagens iniciais: “Esta história consiste das lembranças de um jovem com quem tive contato há muito tempo.” Este narrador por sobre as imagens vai aparecer a espaços na narrativa do filme, mas se dissolve e afasta-se da grande sutileza que é sua utilização no texto literário; o Maugham em cena como interlocutor das demais criaturas da trama, este sim, é constante e recupera parte do engenho do artifício do romance; parte somente, porque aqui no filme de Goulding as características mesmo da vida literária de Maugham não estão arroladas, como no livro, e o Maugham de Goulding assume a personagem do escritor exclusivamente em sua forma ficcional, algo que o livro não deixa de ter, sub-repticiamente, mas no filme o ponto de contato com a realidade mesmo do escritor submerge.

Goulding faz de seu filme um melodrama existencial de um refinamento europeu próprio dos anos 40 e 50. A câmara do cineasta navega, desde a festa de jantar, no início do filme, entre as personagens, criando movimentos em planos-sequência de alguma fluência. A entonação dos atores é elegante e cheira a alguns arcaísmos, mas é bem feita e procura cativar com facilidade o observador. Aquilo que no texto de Maugham se volta muitas vezes para uma profunda melancolia é convertido num melodrama passadista; também os aspectos mais irônicos da narrativa literária desaparecem da construção de imagens por Goulding. No entanto, certos modos plásticos de encenação chamam a atenção: quando a elegância de Gene Tienney (que vive com beleza Isabel) desce uma escada interna ao encontro de seu amado Larry (interpretação correta de Tyrone Power), há uma efusão formal curiosa e que ainda sobrevive ao passar das décadas.

A grande cena do filme de Goulding é aquela em que Maugham, Larry, Isabel e Gray vão a um cabaré da Rue de Lappe, em Paris, e topam a amiga que não viam há muito, Sophie. Bêbada, ela irrompe na mesa onde estão seus amigos. Anne Baxter eleva aí o poder de interpretação do filme aonde não chegaram nem o bem-posto artificial de Power como Larry nem a lascívia de Gene como Isabel. Demais, é bom lembrar que no livro as hesitações de Larry entre Isabel e Sophie, o amor e o pecado redimido orientados pelo misticismo da personagem adquirido na Índia, dominam as inquietações do narrador e da trama. Nesta cena, que se conclui com a volta de Sophie para os braços de seu perigoso gigolô, Goulding dá um tom mais agudo que o aproxima das intenções de Maugham; no entanto no final, quando Isabel, diante do escritor amigo, reconhece que perdeu Larry para sempre (ele está voltando para a América), o melodrama mais simples ressurge.

III — O ROMANTISMO CINEMATOGRÁFICO DOS ANOS 80

Bill Murray e John Byrum construíram um roteiro mais livre em relação ao texto de Maugham que aquele que Lamar Trotti fez para Edmund Goulding nos anos 40. John Byrum dirigiu em 1984 seu O fio da navalha. O primeiro dado essencial: Bill e Byrum eliminaram o narrador-testemunha; e também não puseram na história a figura do escritor Maugham. Demais, aqueles ascéticos planos-sequência do filme de Goulding são substituídos no filme de Byrum por uma agilidade comercial que o cinema médio americano edificou nos anos 80. É bem verdade que Byrum tem uma habilidade acima da média que lhe permite destacar-se do rol de mediocridades que então os distribuidores despejavam nas telas do mundo. Mesmo assim, sua opção formal desce mais degrau no rumo duma comunicação fácil com o público, coisa de que curiosamente Maugham sempre foi (e falsamente) acusado; as aparentes facilidades de Maugham são desviadas por uma série de referências de rara sensibilidade e geralmente são, de maneira desastrada, esquecidas pelos leitores mais superficiais, esquecem a essência e detêm-se em coisas mais assimiláveis, que Maugham também namorava. O filme de Goulding de 46 já procurava um pouco estas superficialidades; o filme de Byrum vai ainda mais além nesta busca. Isto não descaracteriza a validade de suas intervenções cinematográficas: apenas anota uma opção estilística e temática, pois história e personagens podem ter múltiplas funções conforme as mãos que as usam.

As dessemelhanças entre o filme dos anos 40 e este da década de 80 são muitas, em estrutura e composição de episódios. Tem-se a impressão de que o original literário pode ser somente desculpa para um filme, no caso da realização de Byrum; às vezes se vale do que Maugham escreveu, às vezes parece seguir um pouco os passos do filme mais antigo, alterando cenas para adaptar à fluência cinematográfica este uso muito literário do narrador-testemunha em primeira pessoa que se dá no livro. No entanto, talvez a sequência que talvez escancare melhor as diferenças entre o filme de Goulding e o de Byrum seja a do cabaré da Rue de Lappe, em Paris.

No filme de 46, após irromper bêbada na mesa de seus amigos, Sophie retorna a seu cafetão. Só depois vamos saber que Larry voltou a procurá-la e a tirou daquela vida para casar com ela. No filme de 84, Larry paga ao cafetão para ficar meia hora com Sophie, e no entanto foge com ela, sequestrando-a dali, para adiante casar-se com ela, como um redentor, após sua estada mística na Índia. O grande acento do filme de 46 é a intérprete Anne Baxter na pele de Sophie, coisa a que Theresa Russell, no filme de 84, por mais esforçada que seja, não pode aspirar. A cena do cabaré no filme de Goulding se aproxima duma  autenticidade que está no texto de Maugham: “Quando eu a vira na Rue de Lappe, escandalosamente pintada, com seus cabelos tintos e vistosa jaqueta verde, embora estivesse com aparência atroz, e muito bêbada, havia nela um quê de provocante e até mesmo de vilmente sedutor”. Muitas vezes os cinemas feitos de literatura oferecem só lampejos.

O filme de Byrum dedica seu início à guerra, para onde vão Larry e Gray, e ocupa muito espaço com um toque de exotismo espiritual nas cenas na Índia. Diversamente, o filme de Goulding prefere os salões, os jantares e até mesmo os cabarés, onde sua câmara se movimenta à vontade entre as personagens, amiúde sem cortes. Uma das personagens que se destacam no filme de Goulding é Elliott, tio de Isabel; e com ele a interpretação inventiva de Clifton Webb; no filme de Byrum, Denholm Elliott, por mais talento que tenha, não lhe foi exigido umas formas mais criativas de estar diante da câmara. O Elliott de Webb está mais próximo do esnobe dos salões criado nas páginas de Maugham que o Elliott do filme de Byrum, às vezes excessivamente plano e sem viço para apaixonar o espectador em suas aparições.

A cena final do filme de Goulding é a lamentação de Isabel de que perdeu Larry para sempre: quem a ouve é Maugham, o narrador-testemunha. A cena final do filme de Byrum mostra Larry, na pele do sempre bom ator Bill Murray (mais histriônico ainda nos anos 80), subindo uma longa escadaria, antes de embarcar para sua América natal.

Nos dois filmes não encontramos a personagem de Suzanne Rouvier, aquela faceira namoradeira de pintores a quem servia de modelo. É ela quem dá a irônica última cena do romance, antes da conclusão final, ou a suma das sumas. Ela aparece pouco no romance; mas é marcante, e é a ela que Larry revela a história do aviador, na guerra, que morreu buscando salvar a Larry.

III — A HIPNOSE: PALAVRA E IMAGEM

Na cena em que Larry, voltando de sua experiência mística na Índia, busca aliviar as enxaquecas de seu amigo Gray, casado agora com Isabel, a amada de ambos, o romancista destila: “As palavras caíam, lentas, lentas, lentas, como gotas de água numa bacia, provindo de uma torneira defeituosa. O braço de Gray subiu, subiu, até a mão pairar acima da cabeça; e, quando Larry atingiu o número determinado, caiu pesadamente sobre a poltrona.” A cena, no filme de 46, se dá mesmo numa poltrona, numa sala. No filme de 84 Gray está na cama, morrendo de dor de cabeça, e Larry entra no quarto, e aí se dão os dois truques, o da moeda e o do sono hipnótico. O efeito de hipnose logrado no texto de Maugham, ainda que Goulding e Byrum contem com um meio com mais recursos para este encantamento dos olhos e da mente, como é o cinema, não é pleno nem num filme nem no outro. E assim se passam as coisas no mundo das artes.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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