O Cinema Literario e a Literatura Nao-Cinematografica

Uma Janela para o Amor, de James Ivory: um momento raro no cinema

03/05/2021 18:14 Por Eron Duarte Fagundes
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É convenção dizer-se que um grande livro não poderá gerar um grande filme. O cineasta norte-americano Stanley Kurbcik costumava dizer que não se deve partir de um romance de prestígio para se ter um bom roteiro; curiosamente o próprio Kubrick tratou de descumprir seu dogma. Uma janela para o amor (A room with a view; 1986), o filme que o realizador americano europeizado James Ivory rodou na Inglaterra partindo de um dos mais belos romances do autor inglês Edward Morgan Forster, é de fato um caso raro na história do cinema: capta com perfeição a delicadeza emocional do texto de Forster e ao mesmo tempo exala uma todavia enviesada sinceridade da maneira cinematográfica de Ivory; é um pouco como se Forster pudesse filmar seu próprio livro (parece que a mão de Ivory penetrou nas entranhas estéticas do romancista), mas não deixa de ser um Ivory autêntico, que pulsa mesmo no interior de sua frieza e de seu controle estilísticos. E Uma janela para o amor é também um momento raro no cinema porque, sendo uma narrativa sem concessões comerciais, adrede anacrônico em sua estrutura e assuntos, acabou transformando-se no maior sucesso comercial das produções de Ivory e seu parceiro Ismail Merchand. Ainda aqueles que torcem o nariz para a maioria dos filmes do diretor, embarcaram na onda de considerar Uma janela para o amor pelo menos como algo agradável, digno de ver por seus figurinos e cenários. Por que isso? Na verdade, o processo de Ivory não mudou em Uma janela para o amor: o cinema literário que ousa puxar para dentro de si uma literatura não-cinematográfica como a de Forster está lá, os excessos estudados dos diálogos, os caracteres mais rígidos que o habitual, os letreiros que intersticiam as imagens, os temas tão pouco interessantes para os frequentadores de sempre das salas de cinema, tudo contribuiria para que Uma janela para o amor fosse uma dessas pequenas produções que agradam a meia dúzia de observadores. Talvez a explicação esteja num determinado momento da década de 80, quando um drama romântico intelectualizado como este poderia fazer sentido. Para além disto, estamos diante duma obra-prima, êmulo notável do romance original.

São as três figuras centrais de Uma janela para o amor, o filme de Ivory. É um triângulo amoroso onde a estrutura psicológica das personagens é muito bem definida desde o texto de Forster; e somente o engenho plástico de Ivory (ou, em Forster, sua acuidade romanesca) evita o estereótipo. Lucy é uma jovem inglesa que acompanha uma prima bem mais velha numa viagem a Florença, na Itália. Ali ela se apaixona por George, um conterrâneo, que num determinado momento a beija brevemente mas com ardor. De volta à pátria, Lucy está prometida em casamento a uma personagem desajeitada, Cecil, um ser quase sem alma, uma estrutura de chumbo, cujo beijo atrapalhado em Lucy é confrontado na montagem com o beijo apaixonado trocado em Florença com o outro. A coisa se complica quando George e seu pai alugam peças de Cecil. Assim, entre a romântica e também irônica Lucy, o voluptuoso George e o arcaico Cecil se desenvolvem os conflitos de Uma janela para o amor. Se as conclusões morais de Ivory vão juntar os dois pombinhos no plano final acariciando-se e beijando-se diante duma janela cuja vista dá para a paisagem pictórica de Florença, a verdade é que a opção estética do cineasta se alinha ao lado do jeito perturbado e imaturo de Cecil, semeando arcaísmos formais que ainda hoje espanta possa ter angariado tantos espectadores nos cinemas. De qualquer maneira, Ivory expressa seu anacronismo com inegável força cinematográfica. Embora Ivory tenha filmado também a Henry James, outro americano europeizado, é com Forster que o cineasta se identifica. Acredito que se poderia aplicar a Ivory as palavras que o crítico Otto Maria Carpeaux disse de Forster referindo encontros europeus (de Carpeaux com Foster) em viagens europeias no começo do século XX: “Mistura encantadora de elementos, essa: um homem entre histéricos. E assim, o fellow do Kin’s College, Cambridge: continua a crer nos contos de fadas. Acredita que o navio sombrio que nos leva, entre nascimento e morte, de passagem para Índia, poder-se-ia transformar, um dia, em ônibus celeste, levando-nos para o país onde já não precisamos de romances, porque lá existe a verdadeira vida.”

Visto mais de vinte anos depois, é curioso observar o começo de carreira de alguns atores que depois se tornariam estrelas do cinema internacional. Helena Bonham-Carter, que interpreta Lucy, tinha 19 anos quando viveu este papel, e seus pequenos e característicos lábios evocam os lábios e o jeito da atriz francesa Maria Schndeider dos tempos de O último tango em Paris (1972), do italiano Bernardo Bertolucci. E Daniel Day-Lewis compõe um histriônico “nobre assexuado” britânico, algo muito diverso de tudo o que ele viria a fazer depois. Como controlando-os, os madurões Denholm Elliot, Maggie Smith e Judi Dench ajudam a compor um elenco que parece afinado como uma partitura.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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