As Letras Dentro do Cinema de Schlondorff

Desde seu primeiro momento, o cineasta alemão Volker Schlöndorff se preocupou com as relações entre o cinema e a literatura

22/04/2013 22:54 Por Eron Fagundes
As Letras Dentro do Cinema de Schlondorff

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Desde seu primeiro momento, o cineasta alemão Volker Schlöndorff se preocupou com as relações entre o cinema e a literatura, o roteiro cinematográfico como um espelho das reflexões das páginas de um livro. Esta orientação talvez se deva aos tempos em que o realizador estudou e viveu na França; sabe-se que a cultura francesa é dada a estas coisas, a utilização da palavra na imagem e suas variações, e Schlondorff foi assistente de direção de Jean-Pierre Melville e Louis Malle, dois autores tipicamente gauleses.

Tiro de misericórdia (Der Fangschuss; 1976) é extraído dum romance da belga Margarite Yourcenar escrito nos anos 30 do século passado e acompanha, com um rigor formal exemplar, a crueza bélica coordenada pela voluptuosidade efusiva duma mulher, a personagem interpretada com garra e desejo por Margarethe von Trotta, esposa do diretor e também ela uma diretora de primeira linha (Irmãs, ou a balança da felicidade, 1979, e Os anos de chumbo, 1981). Com frieza e método, Schlondorff expõe as fraturas das humilhações do poder (por quem o detém) num tempo belicoso e surdamente insano. Tiro de misericórdia antecede o mais cortante sucesso da filmografia de Schlondorff, O tambor (1979), este buscado num volumoso romance do alemão Gunther Grass publicado na década de 50. Se Tiro de misericórdia, francamente despojado e austero (é dedicado a Jean-Pierre Melville, cognominado o “primeiro professor” pela dedicatória, mas mais parece um exercício à Robert Bresson via Louis Malle), O tambor é uma fábula delirante, que adapta ao espírito germânico o engenho das parábolas grotescas do italiano Federico Fellini. Num e noutro caso a afeição de Schlöndorff pela literatura é fundamental para a confecção duma linguagem cinematográfica densa e coerente.

Densidade e coerência que já se esboçam no filme de estreia do diretor teutônico, O jovem Törless (Der Junge Törless; 1966), escavado da ficção do alemão Robert Musil (esta obra-prima de Musil é de 1906: ou seja, sessenta anos separam a literatura do cinema). Os excessos franceses desta primeira realização de Schlondörff são reclamados pela ensaísta nacional Lotte H. Eisner, que, mesmo assim, não lhe nega o epíteto de obra-prima; entre os dez anos que separam O jovem Törless e Tiro de misericórdia, o cineasta aprendeu a dominar o material de seu ofício. Apesar de tateante e inconstante, O jovem Törless tem uma beleza cinematográfica que nos introduz nos cenários de humilhações e crueldades adolescentes. O que remete ao tema da humilhação e da perversidade bélicas de Tiro de misericórdia. A guerra dos adultos é reproduzido no internato catado em Musil.

Todavia, nem tudo são flores nas adaptações literárias de Schlöndorff. Houve um problema no caminho. Um amor de Swann (Un amour de Swann; 1984) é um retrocesso francês na trajetória de Schlondorff.

“E dizer que eu estraguei anos inteiros de minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo!” Esta frase, dita pela personagem Charles Swann, um aristocrata muito rico, fecha o capítulo “Um amor de Swann”, que integra o primeiro volume do romance-rio Em busca do tempo perdido, chamado “No caminho de Swann” (1913), do francês Marcel Proust. É neste capítulo que o realizador alemão Volker Schlöndorff concentra suas energias cinematográficas para tentar desvendar num filme os métodos estéticos da ficção de Proust, perseguidos nos sonhos mais grandiloqüentes do cineasta italiano Luchino Visconti e poucas vezes ousados pelo cinema, uma delas um frustrante O tempo redescoberto (1999), rodado na França pelo chileno Raoul Ruiz. Talvez o filme que melhor tenha captado o universo íntimo de Proust seja Celeste (1981), onde o alemão Percy Adlon evocava os anos finais do escritor sob o prisma de sua criada.

O resultado da investida proustiana de Schlondorff é Um amor de Swann (Un amour de Swann; 1983), um filme excessivamente controlado em sua encenação, onde cada gesto da câmara parece estar com medo de ferir o monstro da literatura. Visualmente a realização pode deslumbrar pela fotografia minuciosa e introspectiva do sueco Sven Nykvist, pela opulência do guarda-roupa de época, pelas sutilezas dos quadros mostrados. Mas no lugar da densidade de Celeste, por exemplo, também uma narrativa distanciada e reflexiva, o que sobra é uma frivolidade burguesa na concepção estética de Schlöndorff; ele filma um pouco como se o que interessasse em Proust não fosse o refinamento profundo, mas um refinamento que enfada — apesar de um certo rigor intelectual, este rigor é atravessado pelo volubilidade da personagem da cortesã Odette, sem que isto transmita ao filme pulsação vital, mas somente este lado preguiçoso e decadente duma classe social.

A frase que fecha o texto de Proust está na boca de Charles Swann, vivido por Jeremy Irons, no filme de Scklöndorff. Mas longe daquele efeito no tempo que Proust buscava na memória-eu, o que aparece no filme é uma ilustração vazia e pedantemente literária. Os cenários de Schlöndorff são elaboradíssimos individualmente, mas no conjunto cheiram a mofo de época. Jeremy Irons tenta ser fogoso, mas se vai tornando caricato conforme à direção de Schlöndorff; Alain Delon aparece pouco, mas em sua caracterização sobressai este ar de coisa velha e ultrapassada; sobra a italiana Ornella Mutti como Odete: seu seio em translado numa carruagem, seio em movimento devorado pelas mãos, pela boca, pelo rosto de seu amante, este seio de uma jovem Ornela é uma poesia erótica do cinema que poderia resgatar o filme impedindo-o de encerrar-se num sótão para aranhas. Mas, como o propósito do filme não se centra em Odete, mas no ciúme voraz do homem diante dela, Um amor de Swann perde sua oportunidade proustiana.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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