A Pornografia Como Arte
A filosofia na alcova, para ultrapassar os velhos conceitos, se detem muito nas figuras femininas vestalizadas pelas sociedades repressivas
O Marquês de Sade é um imaginoso do sexo, da sensação do físico; e sua imaginação se exercita na crueldade. É uma mente anticristã que se exercita teorizando sobre o cristianismo, navegando por conhecimentos do universo da civilização cristã que muitas vezes passam ao largo de boa parte dos indivíduos formados na filosofia de Jesus Cristo, o oposto de Sade mais brilhante e agudo que se poderia ter.
A filosofia na alcova ou os preceptores imorais (La philosophie dans le boudoir; 1795) é um autêntico convite de Sade para que o leitor mergulhe no universo cristão para o rebater, para propor um outro mundo que parece hoje tão irreal e fantasioso quanto impossível de vivenciar. Vivenciemo-lo pela literatura de Sade; ali se criam alguns hormônios estéticos adiante do tempo, muito além das discussões envelhecidas e um pouco decadentes daqueles anos da Revolução Francesa, anos em que Sade se moveu um pouco em subterrâneos materializados nos cárceres em que o meteram por loucura e crime. A filosofia na alcova é obra de imaginação: possível, ultrarreal, delirante, mas a um passo da mente que se desgoverna, que cria imagens desfocadas mas cheias de volúpia.
No chamamento inicial de seu livro, Sade se dirige aos libertinos. Convida-os a determinarem dali para a frente os novos rumos sociais, guiados pelo prazer puro. “Voluptuosos de todas as idades e de todos os sexos, a vós ofereço esta obra; nutri-vos de seus princípios, eles favorecem suas paixões.” Pedofilia, pan-sexualismo de todas as latitudes, o acerto de contas com as falsificações morais, a edificação exclusiva do prazer egoísta e hedonista onde o outro é sempre fonte para este prazer, a destruição das regras sexuais impostas na sociedade e suas convenções, Sade espalha em seu texto com bastante perversidade, e somente o leitor mais sensível ao primado poético da arte sabe que esta pornografia criativa do autor francês atinge o estágio puro da arte, dentro dos paradoxos de seus termos.
“O destino da mulher é ser como a loba e a cadela: pertencer a todos os que a desejarem. É visivelmente ultrajar a destinação que a natureza impôs às mulheres, atando-se pelo laço absurdo de um himeneu solitário.”
A filosofia na alcova, para ultrapassar os velhos conceitos, se detém muito nestas figuras femininas vestalizadas pelas sociedades repressivas. Sade não age, para com o sexo, com o naturalismo que fez um século depois, não age como um cientista na arte, age como um poeta, como um ente de imaginação. Os pornógrafos vulgares devem muita coisa a ele; mas Sade, o poeta em vibração, não se confunde com eles, as metáforas de Sade são refinamentos dentro da carne. “Entre os Tártaros, quanto mais uma mulher se prostituía, mais honrada ela era; exibia publicamente no pescoço as marcas de seu despudor; e aquelas que não tinham o pescoço decorado não eram estimadas.” Então este achado: a prostituição como honra. Outro mundo, utópico?
Sade é o antirreligioso, certo. Ele aduz: “Não gostaria que nos limitássemos a permitir indiferentemente todos os cultos; desejaria que fôssemos livres para caçoar e rir de todos; que homens, reunidos num templo qualquer possa invocar o Eterno segundo sua fantasia, fossem vistos como comediantes num teatro cujo jogo permite a qualquer um rir.” No entanto, Sade é o religioso por excelência. Conhece agudamente os ritos e os mecanismos das religiões. Em A filosofia na alcova esta estrutura está ali, convertida em literatura: as pessoas se reúnem para o prazer sexual, como num templo (a alcova), e o Sexo é o Deus de Sade, num processo de substituição. Religiosidade às avessas do Marquês.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br