A Pornografia Equina de Jean Garrett
Jean Garrett alinha-se ao lado de Alfredo Sternheim e Carlos Reichenbach como um dos mais ambiciosos cineastas da Boca do Lixo paulistana
Jean Garrett alinha-se ao lado de Alfredo Sternheim e Carlos Reichenbach como um dos mais ambiciosos cineastas da Boca do Lixo paulistana, gueto de produção cinematográfica na capital paulista que dos anos 60 aos 80 concentrou uma confecção de filmes em que o sexo era uma exigência comercial para todos os realizadores. Garrett, Sternheim e Reichenbach faziam filmes eróticos um pouco por contingência, e isto marcou seus processos de filmar, mas no entanto diretores como eles ambicionavam sair daquele gueto e alçar voos artísticos e intelectuais que transpareciam em vários trechos de seus filmes. Somente Reichenbach, um gaúcho radicado em São Paulo, logrou, em determinado momento, transpor a porta de saída do gueto e ser levado um pouco a sério pelos espectadores.
Mulher, mulher (1979) é o filme que poderia ter significado a guinada na carreira de Garrett. Não o foi: no começo dos anos 80, com a liberação do sexo explícito nas telas dos cinemas, Garrett mergulhou no gênero e seu talento se despersonalizou, confundindo-se com o restante dos filmes repetitivos e sem criatividade que se via nos filmes do gênero. Em seu tempo, Mulher, mulher passou um pouco por isto: nada parecia diferenciá-lo muito das pornochanchadas da Boca do Lixo, embora Garrett sofisticasse seu roteiro com citações intelectuais e teses psicológicas curiosas. Revisto tantos anos depois, Mulher, mulher revela a sensibilidade criativa de Garrett ainda capaz de atravessar as décadas; é certo que o filme entremostra suas falhas e as inconstâncias de textura dramática, mas sua complexa encenação em que se misturam passado, presente e imaginação ou delírio sem que se estabeleça uma fácil distinção entre os três ou quatro modos desperta bastante a curiosidade do espectador.
No centro da trama, uma viúva burguesa está num local isolado. A morte recente de seu marido a faz aprofundar os contatos (telefônicos) com seu advogado. Pelas imagens do filme de Garrett, passam sequências da atualidade da personagem Alice (especialmente a aparição duma jovem intelectual, Marta, e a oitiva de gravações das sessões psicanalíticas do falecido marido de Alice, um psiquiatra), coisas que parecem lembranças do passado (o marido ressurge na cena como evocação ou fantasma, ou mesmo na evocação é um fantasma) e outras construções que se afiguram delírios. Mas, no fundo, tudo se assemelha e mistura: o fato presente, a recordação, o delírio imaginado.
Um dos elementos mais badalados de Mulher, mulher é a atração entre Alice e seu cavalo Jumbo. E isto é uma das citações: citação à obra-prima O corpo ardente (1966), de Walter Hugo Khouri. Claro: Khouri é mais sutil e surdo em sua exposição; Garrett, valendo-se do afrouxamento das rédeas da censura no fim dos anos 70, é bastante explícito. A cena básica é aquela em que Helena Ramos é lambida em seus seios pelo cavalo; em entrevista recente a atriz contou como se deu, passaram nela bala de hortelã para atrair a língua do bicho. Helena é uma atriz inexpressiva em sua interpretação; e este é um dos dados de Mulher, mulher, seus objetivos e seus limites. No ano seguinte a intérprete seria submetida aos rigores de direção de atores de Khouri em O convite ao prazer (1980): o resultado é um pouco diverso.
Outra cena de forte erotismo em Mulher, mulher é a masturbação de Alice no chuveiro: inundando de água a genitália, os gemidos eróticos de Helena Ramos inundam os ouvidos do assistente que quer entregar-se a esta libido. É um longo e tensamente erótico plano-sequência; o primeiro plano da vagina de Helena Ramos transborda da imagem.
A jovem intelectual das redondezas com quem Alice priva algumas vezes em seu isolamento lembra a função duma jovem Helen Mirren no filme A idade da reflexão (1969), de Michael Powell: Helen era uma metida na vida recolhida do pintor interpretado por James Mason, assim como Patty Pesce, com a arrogância intelectual juvenil de sua personagem, invade a viuvez e os tons singelos da burguesa de Helena Ramos no filme de Garrett. A diferença é que a intromissão de Helen tinha condimentos sexuais ocultos mas devastadores no mundo da criatura de Mason, enquanto a personagem de Patty vai pelo caminho da intromissão intelectual e algum desenlace sexual aparece aqui e ali num outro contexto, mais ligado à figura do cavalo.
Outra curiosidade. A certa altura Marta (Petty) recita para Alice (Helena) o famoso poema de Camões “Amor é fogo que arde sem se ver”; a poesia camoniana banha e inspira as imagens de Garrett. Curiosamente, um filme da época “mais sério”, Tudo bem (1978), de Arnaldo Jabor, usava esse mesmo poema, no entanto de maneira surrealista, na boca de um dos fantasmas que circulavam ali, o fantasma-poeta.
Rever Mulher, mulher é um pouco agir como o próprio filme: o espectador visita, buscando ao presente, seus próprios fantasmas cinematográficos. Especialmente os brasileiros.
Lá pelo fim do filme, um trecho de texto para unir sexo e morte, algo do cinema intelectual europeu em que Garrett bebe bastante. A voz confessional de Alice traduzida pela voz inexpressiva de Helena, inexpressivamente significativa: “O caseiro saiu de cima de mim e foi para o banheiro lavar-se. Nasceu o ódio.”
Jean Garrett nasceu no Arquipélago dos Açores. Chegou ao Brasil aos vinte anos de idade. Fez seu cinema. Morreu cedo: aos cinquenta anos, na década de 90. Talvez pensando nos amargurados fantasmas de seu destino de diretor, que não chegou a expandir-se como talvez pudesse.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br