DESCIDA AO INFERNO DO SEXO; E A SUBIDA
Para o cineasta Eduardo Coutinho, documentário não deixa nunca de ser emoção, como qualquer cinema, como qualquer arte


Numa temporada em que o cinema documental foi abundante e destacado, conquistando até uma parcela do público geralmente avessa a este gênero que exige do espectador uma disposição mais crítica para com as relações entre a sétima arte e o real, chegam à cidade, neste fim de ano, dois importantes documentários brasileiros, que se colocam com facilidade entre os autênticos bons filmes de 2002.
O veterano Eduardo Coutinho, realizador de Cabra marcado para morrer (1984), considerado pelo ensaísta Jean-Claude Bernadet um divisor de águas em nosso cinema, comparece com Edifício Master (2002), onde a sua espontaneidade e libertinagem de entrevistador de pessoas comuns é radicalizada: tudo nesta obra é improvisado, o roteiro de perguntas é abolido, o que torna mais incrível o resultado final que nunca poderá ser tachado de tosco ou rançoso. É que Coutinho domina admiravelmente o tipo de cinema que vem fazendo há anos, especialmente em seus trabalhos mais recentes: abdicar do estrelismo de cineasta para entregar a narrativa às vozes de suas pessoas-personagens. O que bate na tela é um documentário polifônico, onde o observador é convidado a entrar com o realizador em cada uma daquelas vidas (muitas delas estranhas, dolorosas: uma prostituta que batalha para sustentar sua filha, um falido ex-treinador de futebol, um casal de velhinhos, uma jovem que nunca olha para a câmara, uma estudante que fala duma garotinha chamada Tainá por quem se enterneceu ao ouvi-la sem vê-la fazendo ruído no andar de cima), vidas que se abrem a cada vez que a pequena equipe de filmagem bate à porta de um apartamento do Edifício Master. São muitos os momentos de emoção deste documentário, mas talvez a mais brilhante cena seja aquela em que um senhor que privou com Frank Sinatra há décadas liga seu som para escutar My way e canta exultantemente sobreimprimindo sua voz à do famoso cantor americano. No plano geral que encerra o filme, quando Coutinho mostra as luzes dos apartamentos que se apagam, estamos prontos para adormecer plenos de emotividade - para o cineasta Eduardo Coutinho, documentário não deixa nunca de ser emoção, como qualquer cinema, como qualquer arte.
O jovem Erik Rocha compõe um mosaico turbulento de imagens, em Rocha que voa (2002), para apresentar uma visão atual do pensamento cultural e cinematográfico de seu pai, o cineasta Glauber Rocha, figura ímpar do Cinema Novo brasileiro e diretor de alguns trabalhos que convulsionaram a estética nacional, como Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967). O documentário filial de Erik acompanha Glauber especialmente em seu exílio, notadamente em Cuba, onde começou a rodar um assombroso e perturbador História do Brasil (1971); a base do filme do filho são imagens antigas, entrevistas de Glauber e depoimentos de homens de cinema amigos do diretor baiano; o resultado é uma colagem nervosa, nunca envelhecida, capaz de revitalizar conceitos que pareciam sepultados nos anos 60 e 70. Erik começa sua filmografia sem desonrar o gênio de seu pai.


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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