Uma Narrativa Em Panico
O polones Andrzej Zulawski nunca fez filmes para a regularidade estomacal do espectador
O polonês Andrzej Zulawski nunca fez filmes para a regularidade estomacal do espectador. Ele pega da câmara para causar infecções nas entranhas de quem se aventura por acompanhá-lo em sua construção de imagens. A mulher pública (La femme publique; 1984), realizado na França, é um dos burburinhos de sua filmografia; disseminou o tumulto na cinefilia de sua época e, ainda que adote uma forma de filmar não muito fácil para o observador habitual (a narrativa está à beira do experimentalismo de câmara), por seu próprio teor de “espetáculo de escândalo”, levou a vê-lo gente em desacordo com sua proposta, fenômeno que também ocorreu, na década anterior, com O último tango em Paris (1972), do italiano Bernardo Bertolucci: procuravam o sexo fácil, e no fundo o sexo nestes filmes não é nada fácil, em Zulawski é atravessado por uma psicanálise tortuosa, em Bertolucci por um existencialismo sub-repticiamente político.
Lá por uma das cenas finais de A mulher pública, o diretor de cinema Lucas Kesling (personagem do filme de Zulawski, pois Zulawski se vale aqui do habitual espelho do filme dentro do filme para se autorretratar e identificar ao espectador as linhas do filme que está fazendo) diz à sua atriz Ethel (vivida por Valérie Kaprisky, a intérprete de Zulawski): “O cinema é como uma partícula de luz num oceano de sombras.” O que Zulawski vê na vida é isto: sombras. Ele tenta, a duras penas, lançar sua partícula de luz nestas sombras. Não é um processo fácil: a natureza estética de Zulawski vai aos trancos e barrancos. Em A mulher pública ele apresenta seus momentos de fascínio e também instantes de tropeços. O tom exacerbado, gritado de sua encenação, tem dois senhores: a energia que alça e a escuridão que se afunda no rés do poço. Como o próprio diretor (Zulawski e também seu alter ego, Kesling), o espectador vai em pânico: à deriva. Apaixonado e incomodado. Sem tréguas, a câmara de Zulawski se movimenta pelos cenários de pesadelo de maneira alucinada, turbulenta. Namora uma espécie de cinema amador que Zulawski deve ter praticado em seus tempos na Polônia e depois na França determinou muito da linguagem de suas produções de mais recursos.
Zulawski filma muito como um demente da imagem. Kesling, sua personagem de cineasta, está rodando um filme extraído de Os possessos (1871), do russo Fiódor Dostoievski. A pista dada por este filme de época dentro do filme de Zulawski aponta: a busca dostoievskiana, em certa medida, da encenação de Zulawski. No fim do filme, dá-se o enforcamento da personagem Kesling, o diretor dentro do filme, este diretor é também um ator dentro do filme e este diretor-ator vive a personagem central deste filme-dentro tal como ator Francis Huster no filme de Zulawski interpreta o centro da narrativa: ambiguamente, a imagem do homem enforcado vai por dois sentidos, a personagem dostoievskiana do filme dentro do filme se enforcou ou foi a própria personagem de Zulawski, Kesling? Em vários momentos desta encenação de um filme dentro do filme de Zulawski se provoca esta significação dúbia: os extratos narrativos (Zulawski e Kesling) se misturam, confundem, a certa altura não se distinguem mais.
A francesa Valérie Kaprisky é a estrela voraz da realização de Zulawski. Antes ela interpretara para o americano Jim McBride A força do amor (1983), com uma das cenas mais eróticas da época, fazendo sexo no chuveiro com Richard Gere. É curioso observar que Zulawski se valia muito dos enigmas de expressão para escolher e utilizar suas atrizes. Foi assim com Romy Schneider em O importante é amar (1975) e com Isabelle Adjani em Possessão (1981). Valérie dá sua contribuição de grande força, ainda que não tenha construído uma fama tão grande quanto a de Romy e a de Isabelle. A grande cena de Valérie é a dança, inteiramente nua, diante do fotógrafo-personagem de A mulher pública e, por tabela, da própria câmara de Zulawski (há duas cenas de danças da atriz nua, falo aqui da segunda, quase no final do filme). Penso um pouco na brasileira Zezé Mota, dançando nua diante do olhar aparvalhado de José Wilker, em Xica da Silva (1976), de Carlos Diegues: Zezé era a natureza selvagem tropical. Valérie, ao dançar nua, entre o histerismo e o fogo devorador, gemendo como um choro, ocultando-se em sombras europeias, é outra coisa: mais tenebrosa.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br