Uma Brincadeira de Crianca
De que trata Reparacao? De uma brincadeiras de crianca. Na verdade, uma maldade, uma perversidade infantil
O romancista inglês Ian McEwan é muito festejado pela crítica e, como o cineasta americano Woody Allen, tem admiradores mais ou menos sofisticados, apesar de algumas facilidades narrativas que ele incrusta entre as lições de seus verdadeiros mestres —no caso de Allen, gente como Eric Rohmer, Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman; no caso de McEwan, a remota e reatualizada Jane Austen e laivos de Marcel Proust. Mas há pelo menos um livro do ficcionista britânico que representa um grande salto: Reparação (Atonement; 2001). A sabedoria literária funciona exemplarmente ao longo da narrativa em que se mostra como a literatura muitas vezes, para o ser humano do escritor, apresenta-se com o corpo duma expiação: um desejo de reparar, pelas palavras, os caminhos defeituosos percorremos. Outro inglês, o diretor de cinema Joe Wright, transformou o romance em filme, em 2008, contando com um extraordinário roteiro de Christopher Hampton (que no passado chegou a dirigir alguns bons filmes, como O agente secreto, 1996, baseado em Joseph Conrad) e com a intérprete Keira Knightley especialmente em seu estado mágico.
De que trata Reparação? De uma destas brincadeiras de criança. Na verdade, uma maldade, uma perversidade infantil: que nasce da precipitação do olhar. No coração do mundo de entre duas guerras, em 1935, dentro do moralismo britânico de então, Briony, uma garotinha, metida a dramaturga e a escritora, enquanto encena com seu grupo uma de suas peças, vai à janela e vê uma cena: sua irmã mais velha tira a roupa diante de seu jovem pretendente e joga-se na água. Arrepiada de pudor, desvia-se da janela. Depois, irresistivelmente volta a olhar pela janela e vê sua irmã sair da água furiosa e passar pelo pretendente que, na cena à distância, parece ter o cinismo dos machos satisfeitos. O livro, como o filme, descreve os dois pontos de vista: o de Briony pela janela e o do narrador onisciente vendo a real altercação entre os amantes. No livro, é a visão do narrador onisciente que se dá primeiro. No filme, é o contrário. Esta cena, que é, cinematograficamente, uma reflexão sobre a perspectiva do olhar, algo como o fazia magistralmente Antonioni, é a mola narrativa de Reparação. Briony equivoca-se e sua acusação (o jovem é considerado um lascivo perigoso) leva o rapaz à prisão e depois à pena na guerra. Entregando na última parte do romance a voz a Briony, agora uma escritora setentona, em seu derradeiro livro, às vésperas duma diagnosticada demência vascular, reflexiona sobre as possibilidades de a literatura lhe oferecer um meio de compor um final feliz para os amantes que a vida não deu, pois eles morreram há várias décadas.
“Houve um crime. Mas houve também um casal apaixonado. Essa noite estive pensando em casais apaixonados e finais felizes. Singrando rumo ao arrebol. Uma expressão detestável. Ocorre-me que não viajei muito, desde que escrevi aquela pecinha. Ou melhor, dei uma grande volta e terminei no ponto de partida.”
Em grande estilo, Reparação joga sobre as ações obscuras do passado a luz de suas palavras, de suas construções sintáticas. É este o salto de McEwan.
O FILME QUE SAIU DO LIVRO: OLHAR, IMAGINAR, ESCREVE
Da janela de seu quarto, a garotinha Briony Tallis vê sua irmã e um garoto diante duma área de águas (semelhando um pequeno lago artificial) à beira duma fonte. Arregala os olhos quando percebe que sua irmã, que encara fixamente o rapaz, está retirando sua roupa de cima, como se fosse logo após ficar nua. Apavorada e surpresa, a menina volta-se para dentro de seus aposentos, negando-se a ver a cena que cuida impudica. Pronto, deve imaginar Briony, imagina o espectador, ela vai transar com ele ali mesma; o que Briony imagina é também o que o espectador, pela aparência da cena, deve imaginar. E é um golpe na pudicícia duma garotinha inglesa dos anos 30 do século XX. Mas, impaciente e curiosa, a menina torna à janela. Vê sua irmã sair molhada da água, segurando algo na mão. Esta segunda parte da sequência parece estranha, criando um hiato entre o que aconteceu entre a saída da personagem da janela e sua volta à mesma janela. Porém, o que fica na cabeça da garotinha (e do espectador, que até aí adota seu ponto de vista) é a primeira parte da cena, sua irmã começando a desnudar-se diante de um homem. Pouco depois, poucos passos adiante na montagem, esta cena é filmada pelo lado de fora e então o espectador descobre o que houve: Cecília, a irmã de Briony, e Robbie, o garoto presente, tiveram uma discussão, ele deixou cair um vaso quebrado na água e ela, enraivecida, retirou parte da roupa, mergulhou e foi buscar o objeto. A cena, em seus ângulos de visão, é construída em escassos e sintéticos planos, com uma precisão narrativa exemplar: o plano de Briony à janela, os breves planos de Cecília primeiro rígida, depois despindo-se, o plano de Briony que recua para o interior do quarto, novo plano à janela onde Briony vê sua irmã ressurgir das águas; ou os planos enxutos, no lado de fora, em que a câmara apanha a discussão de Cecília e Robbie, o mergulho na água, a volta à superfície.
Em Desejo e reparação (Atonement; 2007) o cineasta inglês Joe Wright discute a relatividade do olhar e a forma como a imaginação de quem olha pode alterar o que está sendo visto. Cinema de certa maneira é sempre uma discussão do olhar. Cuido que ninguém melhor do que o italiano Michelangelo Antonioni captou a aventura cinematográfica de olhar; em Depois daquele beijo/Blow up (1967) Antonioni torna maravilhosamente oblíqua qualquer objetividade do olhar. O que é mesmo que estamos vendo? Esta questão retorna na cena de Briony à janela em Desejo e reparação.
Desde menina, Briony tem pendores literários, é imaginativa, o que aguça a progressão olhar, imaginar, escrever. O barulho de sua velha máquina de escrever vai ecoar persistentemente em muitos trechos da faixa sonora do filme. De uma certa maneira, a construção narrativa de Desejo e reparação vem de uma contemplação sobre os equívocos do olhar. Briony, a protagonista, não se contenta com a objetividade do que vê: imagina em cima. Depois do equívoco à beira da fonte, Briony vai surpreender sua irmã Cecília e Robbie fazendo sexo na biblioteca: Briony os interrompe. E finalmente, ao surpreender uma tentativa de estupro no campo, ela se convence de que era Robbie o estuprador: diante da cena da fonte e da cena da biblioteca, Robbie aparece a seus olhos (como ela mesma diz em seu testemunho contra o rapaz) como um “maníaco sexual”. Isto liquida com a vida de Robbie e com o amor desenhado na biblioteca entre Cecília e Robbie.
No vaivém temporal de Desejo e reparação, chegamos à sequência final em que Briony é uma velha escritora à espera da morte e revela que escreveu seu último livro (contando sua história, de sua irmã e de Robbie) para que a arte pudesse expiar a vida. Se a jovem atriz inglesa Keira Knightley tem uma interpretação entre lacrimosa e amanteigada que provoca alguns suspiros eróticos, a grande dama Vanessa Redgrave aparece no final como Briony para transformar o melodrama numa inesperada reflexão filosófica. Os autênticos cinéfilos ficamos todos de joelhos diante daquelas breves e profundas aparições de Vanessa no fim do filme.
Sublinhe-se ainda a excelência do roteiro do inglês Christopher Hampton, que há muitos anos fez sucesso ao verter para a direção do inglês Stephen Frears o texto de Choderlos de Laclos em Ligações perigosas (1988). Hampton também dirigiu alguns filmes preciosos, Carrington (1994) e O agente secreto (1995), este último extraído dum romance do inglês Joseph Conrad de 1907. Em Desejo e reparação Hampton soube criar as condições de linguagem para que o romance de Ian McEwan se convertesse em peça de filmagem nas mãos de Wright, que em vários momentos de sua filmografia opta por ser um herdeiro cinematográfico da tradição novelística do século XIX, como já ficara plasmado em seu filme inicial, uma incursão pelo universo da ficcionista inglesa Jane Austen, Orgulho e preconceito (2005)
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br