Ver e Nao Ver em Hitchcock

Podemos remontar Hitchcock utilizando os detalhes nao vistos (ou despercebidos) de Os Passaros

16/05/2022 16:39 Por Eron Duarte Fagundes
Ver e Nao Ver em Hitchcock

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Em Os pássaros (The birds; 1963) o cineasta inglês Alfred Hitchcock depura algo que á essência de seu estilo revolucionário de filmar: as relações entre o ver e o não ver em cinema. Que é mesmo que vemos quando vemos um filme? O que se oculta na visão aparente duma cena de um filme? Em seus momentos mais inspirados (semioticamente) Hitchcock filma para que o espectador veja o que não se pode ver muito bem em cinema: o espírito cinematográfico. Que empulhação é essa, pode pensar o observador mais materialista do cinema, aquele que enxerga somente aquilo que em Hitch não passa de um pretexto, a trama, o suspense, os truques com os sentimentos aflorados da plateia. Os pássaros tem em todos os seus enquadramentos olhares estranhos que se voltam numa só tacada tanto para as ambientações da narrativa quanto enviesadamente para o espectador: vai contando uma história de aproximações amorosas, enredos familiares, redes humanas de interior, uma mulher incisiva interessada num solteirão dominado pela mãe e que tem uma namorada aguada, para finalmente ver aquilo que nem os aguardados ataques dos pássaros à humanidade podem revelar, um terror assombroso, ancestral, indizível. A câmara filma uma coisa, mas seus olhares parecem estar sempre lançados para uma outra direção. Na sequência em que Melanie Daniels se afasta da ilha, depois de ter deixado um bilhete na casa do homem que pretende cortejar, um movimento de câmara para a frente mostrando o afastamento de Melanie pela ponte até chegar ao barco é alternado com um movimento lateral da câmara junto à casa à distância do olhar de Melanie captando este movimento e esta casa (ou seja, cruza um movimento de câmara que representa o andar apressado de Melanie com outro movimento de câmara que vem a significar o movimento perscrutador do olhar de Melanie para a casa que acabou de deixar). Olhares assim, terrivelmente indagadores, se espalham ao longo de Os pássaros. E é pela montagem alternada duma imagem objetiva (descrever a personagem no cenário —Melanie saindo da ilha) com uma imagem sutilmente subjetiva (a casa que se move com o olhar da personagem enquanto se afasta da ilha) que se exerce a extrema originalidade de Hitchcock como cineasta.

A indignação aparentemente gratuita dos pássaros de Hitchcock é ainda hoje uma aventura de ecologia cinematográfica perturbadora. Orquestrando as aves treinadas por Ray Berwick, nuançando os contrastes entres cores fracas e cores fortes nas imagens de Robert Burks, eliminando quase inteiramente a música na faixa sonora para dar passagem à sinfonia ameaçadora dos pássaros, Hitchcock faz também de sua inusitada loira Tippi Hedren uma peça de montagem do filme que se alinha neste processo de ver o que está sendo filmado para na verdade ver outra coisa por trás da atriz-personagem; retirado de Os pássaros, o desempenho de Tippi não funcionaria em filme algum, incaracterístico, inexpressivo, pálido, mas na semiologia do filme é uma antologia, uma sintaxe impagável —Tippi e sua interpretação como uma forma de montar um filme nas mãos de Hitchcock.

Ver, deixar de ver, desatenção nos detalhes. Quando Melanie entra na escola, vemos o letreiro, grande e visível: Bodega Bay School. Depois dos ataques das aves às crianças, quando tem de informar o nome da escola, por telefone, num bar, Melanie pergunta a alguém: “Qual é o nome da escola?”. Melanie não vê o que se passa à sua volta, é apanhada pelas situações. Sentada diante da escola, está a fumar; a câmara vê um pássaro, outro pássaro chegar, volta-se para Melanie, quando ela levanta os olhos é uma multidão de perigosas aves que aparece diante dela e diante da câmara. Por ver sem ver, Melanie vê-se trancada numa cabine telefônica ameaçada do lado de fora pela ira dos pássaros (inverte-se a ordem: o ser humano numa gaiola, ou sua simulação, a cabine telefônica, enquanto do lado de fora os pássaros o cutucam). E depois Melanie é levada ao pânico (de que não se recuperará até a preciosista e calculada cena final em que fogem a medo e silenciosamente de carro entre uma multidão quieta mas perigosa de aves) diante do terrível ataque dos bichos dentro da casa (casa, outra gaiola humana). Lembre-se que Melanie, na narrativa do filme, foi a primeira personagem a ser bicada por uma gaivota. Foi tido como um acidente. O olhar estranho da câmara acusava alguma outra coisa; certos planos esdrúxulos de Hitchcock materializavam esta estranheza do olhar.

Podemos remontar Hitchcock utilizando os detalhes não vistos (ou despercebidos) de Os pássaros. E damos então com a mais visível de todas as sequências do filme. Uma exuberância técnica e plástica. A da explosão no posto de gasolina. Começa com a câmara baixa que vê o escapamento do combustível, a chegada da gasolina até um carro onde um homem fora do carro acende um charuto, joga o fósforo no chão, o fogo sobe pelo homem que passa a queimar-se. Explosão. Corte para um superplano aéreo geral de Bodega Bay. Esta cena no cinema tem um poder agressivo que na pequena tela se dilui bastante. É uma imagem de grande visibilidade em sua aparência. Mas o que é invisível aqui é este liame que liga a câmara baixa à câmara alta, o cotidiano quase abstrato à panorâmica concreta dum lugarejo esquecido e que nos rádios dos carros é aludido meio à distância. É pela inserção da montagem que Hitchcock dá a Os pássaros um sentido quase divino, o poder cinematográfico da montagem como efeito da divindade do cineasta.

Se o desempenho de Tippi Hedren é uma invenção muito particular de Hitch e da magia de seu filme, pode-se dizer que a única interpretação “extraível” da realização como uma “pérola em si” é a da já então veterana Jessica Tandy (na pele da mãe do homem pretendido pela loira insistente), atriz inglesa que fez sua carreira nos Estados Unidos e que nos anos 80, já anciã, foi figura interessantíssima em Hollywood. No mais, Os pássaros é uma cantiga visual de Hitch para sua criatura Tippi, que logo depois interpretaria para o cineasta Marnie, confissões de uma ladra (1964), uma narrativa mais “normal” do gênio de Hitchcock. Os pássaros foge a qualquer normalidade e este é seu lado experimental como cinema.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

 

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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