A Beleza Cinematográfica em Seu Êxtase
Um Corpo Que Cai é a festa do olhar cinematográfico: tudo flutua com a precisão sensível de Hitchcock.
Um corpo que cai (Vertigo; 1958) é a festa do olhar cinematográfico: tudo flutua com a precisão sensível de seu diretor, o inglês Alfred Hitchcock, em cada movimento (uma câmara que se desloca no cinema, os gestos faciais estranhíssimos da intérprete central), ao mesmo tempo em que cor e movimento se deslocam por uma especial plasticidade de linguagem (uma mulher, vestida com verde, se levanta de um jantar e cruza por um cenário em que as paredes são exuberantemente vermelhas, não o vermelho sombrio que o sueco Ingmar Bergman filmou como se fosse a própria alma, o vermelho de Hitchcock é o vermelho de castelo, de arquitetura gótica, mas um gótico aberto). A cópia agora restaurada traz a tradução para o português de Portugal: o título é A mulher que viveu duas vezes (europeus são muito por Freud ainda) e nos diálogos abunda um “tu” bem conjugado, as colocações de pronomes bem ajustadas e muitas preposições “a” onde o coloquial brasileiro usaria o “em”. No entanto, a beleza visual de Um corpo que cai resplandece cada vez mais com os anos e estas restaurações capazes de valorizar ao máximo os engenhos de Hitchcock; êxtase ou orgasmo de ver, eis tudo. O filme em que tudo o que o americano Brian de Palma disse que gostaria de ter feito estava ali; uma narrativa fílmica mais próxima da pintura do que de qualquer outra arte.
Agora, Kim Novak. Sua canastrice é evidente. Num esforço de retirar seu desempenho de dentro de Um corpo que cai poderíamos enxergar seus problemas de interpretação: seu desenvolvimento cênico é quase colegial, das modulações inexpressivas da face à voz metalicamente reiterativa, teatralzinha. Mas Kim existiu no cinema para que um dia ela e a linguagem cinematográfica de Hitchcock casassem numa obra como Um corpo que cai. Kim veio ao mundo certamente para estar dentro de Um corpo que cai. Sem sua ação flutuante dentro da cena faltaria alguma coisa no corpo de Vertigo: um estômago, uma orelha? Talvez a joia que sua personagem usurpa da bisavó do retrato no museu para espanto da figura de James Stewart.
E então, James. Mais uma vez ele é um pouco o alter ego do cineasta. O porta-voz de Hitchcock. É com James que Hitchcock conduz uma sexualidade de imagem tão contida que se abeira do platonismo. É quase como um amor físico à meia-potência: sexo velado.
E a vertigem em movimento no cinema de Hitchcock se traduz naquilo que ele faz nas duas sequências do campanário, quando James corre atrás de Kim mas, ao olhar para baixo, na escada, se embriaga das imagens que vê. O movimento de câmara de recuo aliado com o uso da lente para a frente permite ao realizador o efeito ébrio, tonto. Ele revelou isto a François Truffaut nas famosas entrevistas.
E o espantoso aparecimento final daquela freira, Kim escapando-se dos braços de James para, agora sim, o fim, uma consciência punida que despenca no abismo (a personagem se atira do campanário), a freira pondo-se a badalar o sino, é um dado tão excêntrico que, em outros tempos chamou-me a atenção Tuio Becker, é o princípio do experimentalismo no clássico Hitchcock.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br