Umas Raras Aulas de Epistemologia
Todos os ensaios de Estudos e direitos dos animais mantem no ponto alto os dois elementos a que se refere o comeco deste comentario: lucidez e reflexao
Anna Caramuru Pessoa Aubert - Arquivo Pessoal
Estudos e direitos dos animais: teorias e desafios (2022) é um livro raro. Uma fonte de lucidez e reflexão. Organizado por Ana Paula Barbosa-Fohrmann e Daniel Braga, com coordenação de Anna Caramuru Pessoa Aubert, a obra traz oito ensaios que aprofundam a questão das relações interespécies entre os animais (humanos e não humanos) invadindo áreas complexas da epistemologia, da etologia, da filosofia, da ética, da biologia; há nos textos, cada um a seu modo e com a particularidade de seus autores, uma aguda interdisciplinaridade em que o cérebro é devassado por questões urgentes, inadiáveis, imperiosas mesmo ao pensamento contemporâneo. Em momento algum a lucidez radicalmente filosófica das meditações levantadas cede lugar aos aspectos aparentemente piegas ou sentimentais das relações do homem (são animais humanos que estão escrevendo sobre animais não humanos) com os demais seres da natureza, especialmente os animais. Os direitos dos animais (incluídos os nossos, animais humanos) não é uma questão de escolha, simplesmente: é uma questão de essência natural, topada na filosofia, na etologia, na ética, na biologia, no que mais vier para juntar-se ao conhecimento que é epistemológico. Estes dados se interligam de ensaio para ensaio, no livro, em abordagens diversas.
Em “O abolicionismo animal de Tom Regan”, assinado por Daniel Braga Lourenço, lemos: “Assim é que Regan propõe que todos os sujeitos de uma vida, sejam eles humanos ou não, possuem igual valor inerente e, como tais, devem ser alvo de consideração moral direta independente das sensações de prazer ou dor.” Há pedras de toque imbatíveis em argumentação, como esta de Gabriel Garnendia de Trindade em “A abordagem abolicionista de Gary L. Francione: um guia de leitura atualizado”: “À luz desse panorama contraditório, Francione e Charlton mantêm que, soprados todos os fatos, não há diferença moralmente relevante entre alguém que se alimenta de animais não humanos por prazer e alguém que se diverte organizando e apostando em rinhas de cães.” Anna Caramuru Pessoa Aubert, em “O tratamento concedido a animais não humanos pelo enfoque das capacidades de Martha Nussbaun”, vai ao coração da filosofia para elucidar: “De todo modo, é possível que na base do enfoque das capacidades de Nussbaun, estaria a noção aristotélica de que em todas as formas complexas de vida há algo de valor, que desperta curiosidade e interesse.” Por textos diversos no livro, outros pensadores, alguns dos maiores cérebros do mundo, como os franceses Michel Foucault e Jacques Derrida, se convertem em departamentos filosóficos de que estes estudos dos direitos dos animais se socorrem para compor este mosaico reflexivo que é, acima de tudo, o livro. Em “Animais na fenomenologia: um campo de pesquisa a explorar nos estudos animais”, a agudeza de Anna Paula Barbosa-Forhmann, detendo-se sobre os escritos de Uexrüll, aponta para o centro da própria ideia do conjunto de ensaios que se juntam num tema: “Sua originalidade em não seccionar a biologia das humanidades (i.e., filosofia e música), em outros termos, o caráter interdisciplinar de sua abordagem, abre possibilidades de compreensão, nos dias de hoje, do sujeito animal não atado a teorias que se calcam na dicotomia animal versus humano.”
Todos os ensaios de Estudos e direitos dos animais mantêm no ponto alto os dois elementos a que se refere o começo deste comentário: lucidez e reflexão. Para enfeixar estas lucubrações, uma nota sobre o ensaio que fecha o livro, “Para além do Direito: um olhar fenomenológico sobre a questão do abandono de animais não humanos idosos, adoentados ou com deficiência”, texto a quatro mãos por Ana Paula Barbosa-Fohrmann e Anna Caramuru Pessoa Aubert. O assunto se situa bastante próximo das relações mais sentimentais que se possa ter com o tema de maneira geral. Há uma entrevista com Maribel Amengual, resgatadora e cuidadora de animais, em que estas fronteiras entre a reflexão e o sentimento direto criam a inevitável instabilidade das emoções do leitor; no entanto, as autoras logram fazer voltar as coisas àquele estado que interessa num estudo, a lógica, a reflexão: “Do ponto de vista da fenomenologia, o relato acima mostra, na experiência concreta, como Maribel Amengual é afetada pelas sensações e sentimentos em direção a cães e gatos em seu dia-a-dia e, como resgatadora e cuidadora de animais não humanos, o que a torna consciência motora.”
O resultado de todo este notável esforço de pensar, a partir de um tema de interesse comum dos autores dos ensaios, é um livro cujo conceito se procura encaminhar já no título deste artigo: raras aulas de epistemologia. Um aprendizado para quem lê.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br